Nogueira, Carlos. “Aspectos do ex-voto pictórico português”. Culturas Populares. Revista Electrónica 2 (mayo-agosto 2006).

http://www.culturaspopulares.org/textos2/articulos/nogueira1.htm                   

ISSN: 1886-5623

 

 

 

 

 

Aspectos do ex-voto pictórico português

 

Carlos Nogueira

Centro de Tradições Populares Portuguesas

“Prof. Manuel Viegas Guerreiro” / 

Universidade de Lisboa

 

Resumo

O ex-voto, como objecto, que, colocado em ermidas, igrejas, capelas, etc., se oferece a Deus, à Virgem Maria ou a um santo, em cumprimento de um voto (do latim ex voto, “segundo promessa”), tem, em Portugal, uma das expressões mais quantiosas e ricas nas tábuas, painéis, quadros ou retábulos votivos, a que se atribui ainda a designação de “milagres” (por empréstimo sinedóquico da fórmula de abertura de grande parte destes artefactos, a qual, de resto, de todas aquela que certamente não é apenas do uso de especialistas, reenvia imediatamente para a práxis religiosa que se celebra e para o conteúdo diegético humano-religioso que ali se concentra). As narrativas pictóricas neles plasmadas, alusivas, na sua maioria, a moribundos e a naufrágios, a par das inscrições que os acompanham e prolongam, consubstanciam uma fenomenologia do corpo e da alma que importa conhecer, para o que é necessário convocar conhecimentos interdisciplinares (da semiologia, da estética, da literatura, da linguística, da etnologia, da sociologia, da religião...).

Palavras-chave: ex-voto, pintura popular, religião

 

 

Abstract

The ex-voto (Latin: in conformity with a promise), as an object, is an offering made to God, to Virgin Mary or to a saint to fulfill a vow. In Portugal, one of its richer and more common expressions is represented in votive painted leafs, panels, pictures or retables, also called “miracles”, due to the initial formula of the text that most of them show. This designation refers directly to the religious practices connected with most of these artifacts and to their both religious and human content.  Most of the painted narratives of these objects are allusive to scenes of dying persons or shipwrecks. These scenes and the inscriptions beside them imply a very interesting phenomenology of the body and the soul that, to be scientifically understood, demand an interdisciplinary approach where semiology, aesthetics, literature, linguistics, ethnology, sociology, and religion have a contribution to make.

Key Words

Ex-voto. Popular Paintings. Religion

 

 

A narração iconográfico-linguística do quadro votivo converte-se em história sagrada, em mitobiografema (Roland Barthes) que proporciona ao homo religiosus paradigmas de comportamento e interpretação, dotando a existência humana de argumentos lógico-sobrenaturais destinados a resolver uma contradição. Para se desencadear, a função mítica não pode prescindir da estesia que vem da contemplação destes objectos ideográficos, cuja sintaxe predominante consiste, de um modo muito geral, na cena representativa de doença, num moribundo prostrado no leito, assistido quer pela família a rezar, quer, em posição elevada ou, pelo menos, saliente, num halo, pela figura da divindade invocada, reforçada, às vezes, por símbolos cristãos como o crucifixo ou a cruz (isolada, sobre um altar, etc.); e, na representação de quase naufrágio, num barco na iminência de desaparecer sob as águas revoltas, protegido igualmente por uma das mais proeminentes entidades divinas do cristianismo. O herói trágico que o ser humano é transforma-se em herói épico.

Com esta bipartição, que, já se vê, não está isenta de um esquematismo demasiado rígido, não pretendemos mais do que relevar, num primeiro momento e dentro de um espírito sistematizador e didáctico, os espectros conjunturais mais recorrentes desta espécie de ex-voto. Não desconsideramos o que observa Rocha Peixoto, para quem “Os assuntos que constituem o vário objecto desta expressão duma credulidade grata são todas as dores humanas e todos os acidentes que, individualmente ou no ambiente em que se agita, afligem, conturbam e surpreendem o crente”[1], ocorridos em terra ou no mar, ou sem quaisquer outras indicações para além do nome da divindade e do crente (especificidade que, se não é acompanhado da dimensão pictórica, vem a ser um sector muito particular de painel votivo). A proposta taxionómica de Luís Chaves não desdiz nem completa, no fundamental, a de Rocha Peixoto: cenas de doença, desastres ao ar livre e tempestades no mar[2]. Ou talvez seja um pouco mais restritiva, por incluir a noção de queda concretizada, mesmo se o desastre, ao contrário de uma doença perfeitamente revelada, não chega a consumar-se (como nas investidas de índios, ladrões ou animais selvagens), ou mesmo se o benefício, em vez de reparar uma desgraça, é acima de tudo preventivo (protecção de filhos ausentes, por exemplo). Daí que talvez a substituição de “desastres” por “acidentes e incidentes” pudesse definir com mais rigor terminológico o conteúdo da rubrica.

            A imagem, marcada não raramente por evidentes limitações técnicas, e, diga-se de passagem, a este apontamento não subjaz qualquer juízo de valor estético, caracteriza-se pelo realismo de uma quotidianeidade que é religiosidade popular em todos os seus ciclos, a que um simbolismo da afectividade das figuras-personagens humanas confere a máxima potenciação religiosa e moral (tal como é determinado pela comunidade). O olhar é piedoso e severo, introspectivo, os gestos são recatados, a organização da cena reduz-se ao essencial, a disposição dos diversos elementos (semas) não é aleatória nem insignificante. Tal sobriedade (preferimos o termo, aqui, às expressões má qualidade, inocência, puerilidade, naïf, pitoresco), directamente ligada ao que designaríamos como sortilégio da ingenuidade, torna estas tábuas votivas mais legíveis: a imagem conota, abre-se sem limitações à imaginação e à intersubjectividade de tipo identitário, enquanto a legenda descreve, (re)conta, (de)nota.

Ora, se assentarmos que o ex-voto é um sistema de comunicação, uma mensagem em que tudo é palavra-corpo-(d)e-imagens que sente e pensa com o sentir-querer da fé, imanência e transcendência, poderemos iniciar uma investigação que considere a semantização que decorre das relações entre a linguagem não verbal, a imagem, núcleo que primeiro capta a consciência e as sensações do observador (que vive na comunidade mas também o que lhe é mais ou menos exterior, incluindo os estudiosos das diversas disciplinas), e a linguagem verbal.

O ex-voto começa por operar uma projecção da realidade individual e social na realidade sobrenatural, de cuja irrigação mútua resulta, digamos, uma ultra-realidade em devir que se impõe ao espectador ou ao utente-fruidor como estrutura circular: uma estrutura que vive numa temporalidade cíclica e não sequencial, sem princípio nem fim, auto-suficiente e, em última instância, imune a qualquer contingência ou desastre definitivos provocados por acontecimentos ou forças exteriores. Através do ex-voto, paga-se a promessa contraída e entretanto realizada, mas não só: este objecto artístico-ideológico não vale menos como testemunho da substituição da desordem pela ordem, da quase-morte pela vida, do sofrimento pela confortável e utópica imutabilidade. A narrativa de cada uma destas tábuas votivas estabelece-se sobre uma relação precisa: cosmos-anthropos e logos, objecto de linguagem que une irredutivelmente o sagrado e o profano, de modo a resolver facetas desconhecidas e traumatizantes do quotidiano, da vida social e da cosmologia, e a compensar a radical solidão da não-realização integral do ser humano em vida. Ao esquecer-se (despojar-se) de si no interior da relação de dádiva (graça) divina, o cristão torna-se plenamente presente em si e nos outros. O pagamento da promessa é a marca da densidade da sua individuação, dentro da dimensão comunitária do acto de maravilha e arrebatamento divinos.

Pintados a óleo sobre madeira, cortiça, tela, folha de flandres, folheta, chapa (cobre, zinco, etc.) ou cartolina, mas também a aguarela sobre papel, cartão ou cartolina, como ainda simplesmente desenhados a lápis ou crayon sobre papel ou cartolina, ou mais raramente sobre vidro, ou, também em ocorrências possivelmente muito pontuais, com aplicação de aguarela sobre fotografia[3], os painéis gratulatórios ou “milagres” apresentam um funcionamento bidimencional: como imagem e como linguagem verbal.

A autoria quase sempre anónima deste objecto, existente em grande número quer, já o dissemos, em igrejas e capelas, o seu lugar de eleição, quer, à medida que foram adquirindo valor etnográfico e estético, densidade de enigma religioso e histórico-cultural, em museus, colecções regionais ou acervos mais ou menos dispersos (a que às vezes se dá visibilidade através de exposições, como a que aconteceu em Guimarães, de Dezembro de 2004 a Maio de 2005, organizada pela Sociedade Martins Sarmento), só muito pontualmente é quebrada pela notícia de um quadro votivo assinado. Nisto ele é autenticamente “popular”, termo (e conceito), nunca será demais repeti-lo, que se nos afigura sempre como um índice demasiado pejorativo, de tal modo que o não podemos aceitar senão com grandes reservas. Mas o que por agora mais importa notar é que, se a anonímia permanece ao longo dos séculos, mesmo se é possível rastrear a produção de um autor com base na detecção do seu estilo, e se a variante que cada painel constitui se inscreve numa invariante de que a comunidade é autora e utente, isso significa que estamos perante um sistema de comunicação que transfigura o que no binómio real empírico / real sobrenatural e invisível é transparência reversível: a estampa é espelho de um passado-presente que se recorda no acto da visualização, de modo a que o futuro não martirize o grupo insuportavelmente. No seu estatismo plástico, estas cenas não existem sem um ritmo narrativo que é ao mesmo tempo celebração do acontecido, visão profética e aperfeiçoamento espiritual.

            Mas erraremos uma compreensão pelo menos mínima desta arte se não percebermos que é imanente o misticismo que o ilumina. Ou seja: na sua concepção material, este tipo de ex-voto quer-se comunicante e anti-enigmático, ou não buscasse ele sem afectação o divino, envolvendo-o num processo de pôr em comum que dá sentido gnosiológico e axiológico aos sinais visíveis e audíveis do quotidiano do cristão.

Com a vulgarização da fotografia de preço acessível, que, em especial no último quartel do século XX, ainda acompanhava alguns quadros votivos pintados, muda radicalmente a representação visual por que se mimetiza o acontecimento considerado milagroso. A imagem fotográfica rasura a figuração do “milagre”, da “graça” ou da “mercê”, colocando em primeiro plano o impetrante-ofertante e a função por ele cumprida enquanto pagador. O simbolismo do quadro é substituído pelo pragmatismo da mimese exacta do crente, que, auto-representando-se, valida o reconhecimento da comunhão com a divindade e o pagamento da promessa. Mas dir-se-ia que o ex-voto iconográfico não desapareceu de todo, como prática, nos nossos dias, embora, para já, por falta de catálogos actualizados, não possamos com qualquer rigor definir a amplitude da sua existência, ou os contornos da sua sobrevivência ou agonia. Seja como for, no livro Santo António de Lisboa. Ex-Votos, de Henrique Pinto Rema, regista-se um exemplar muito interessante, sem indicação de autor mas com data e local, “Lisboa 2003”, e com a seguinte legenda (que, é fácil de concluir, coloca problemas de classificação, na medida em que o que se equaciona é, não a reparação de uma situação de pathos profundo, mas a existência de uma situação – reconhecidamente confessada com regozijo, o que aliás é corroborado pela ausência de representação do devoto de olhar piedoso – de bem-estar material, em parte, por assim dizer, expressa na linguagem minimal e concentrada das mensagens SMS): “Ao Santo António por estes milagres para o António. 1jardim, 1avião, 1ilha e uma casa no Rio”[4].

Aqui e agora, não se justifica abordar os painéis votivos portugueses dentro de um enquadramento etnográfico. António Augusto da Rocha Peixoto já aliás se encarregou de tal etapa, e com minúcia, num estudo de 1906, intitulado Tabulae votivae[5]. Aí se estabelece uma caracterização do percurso histórico da pintura votiva: aos “quadros simetricamente dispostos a toda a altura”[6] dos templos egípcios sucedem-se, nos templos helénicos, tanto “as pinturas murais em que se exibiam episódios históricos, curas miraculosas e cenas de tempestade consagradas por marinheiros”, como os “quadros de madeira ou argila, com a dedicatória ao deus, o nome da pessoas e o assunto do milagre”[7], colocados em árvore sagradas, estátuas e altares; em Roma, a filiação prossegue nas tabulae pictae, e, entre os lusitanos, sobretudo nas peças epigráficas consagradas ao deus Endovélico. O etnógrafo poveiro entra ainda em território português, para, antes de observar as semelhanças entre as tábuas de promessa portuguesas, espanholas, italianas e francesas, dizer que “as consagrações lapidares, memorando cultos ou edificações por votos ou legados pios, igualmente assumem, muitas vezes, certas fórmulas já características nos retábulos” (por exemplo, observa-se que «a Fuas Roupinho, no século XII, “sucedera que arremessando inconsideradamente o cavalo no alcance d’hum cervo… & indo já para cayr, na ultima ponta d’este despenhadeiro invocando o nome da Virgem foy livre da queda & mais da morte…”»[8]). Luís Chaves, atento ao trabalho daquele estudioso, faz remontar as tabulae votivae a cultos pré-históricos[9] e entende-as de acordo com um sistema de categorias teóricas destinado a sustentar a tese de uma evolução no período medieval[10]. Também Robert Smith, a propósito da família europeia deste tipo particular de ex-voto, afirma: “são a melhor aproximação lusitana que há das pinturas inglesas do século XVIII chamadas conversation pieces, mostrando pessoas dentro das suas casas, ou das vedute interiores dos pintores venezianos de Setecentos, sobretudo de Pietro Longhi”[11].

Do que não há dúvida é de que os painéis votivos portugueses se encontram identificados a partir de finais do século XVI, o que não por acaso coincide praticamente com o desenvolvimento que as técnicas de pintura conhecem nesta centúria. O maior fluxo verifica-se contudo entre meados do século XVIII e a primeira metade de Novecentos, atingindo aqui o seu ponto de maior abundância, embora não se possa propriamente falar em escassez do quadro votivo ao longo de grande parte do século XX (sobretudo até à década de 80). Paralelamente ao processo de cisão entre a burguesia e as camadas ditas populares (as que ocupam a base da pirâmide social, que o mesmo é dizer as que não beneficiam ou beneficiam muito menos das oportunidades de acesso à riqueza material e imaterial, à cultura e às decisões efectivas), aquela, cada vez mais próxima da religiosidade oficial, renuncia progressivamente a esta modalidade de ex-voto (que, num primeiro momento, lhe estava primeiramente reservado). Não se estranha por isso o facto de os ex-votos posteriores a 1850 pertencerem, na sua maioria, a pessoas economicamente desfavorecidas, como se percebe pelas informações contidas nos quadros (indumentária, mobiliário, construção da casa, tipo de trabalho figurado na cena, etc.). O que não equivale a dizer que uma categorização em pobres e ricos explica, por si só, a proveniência deste artefacto. Se, como parece por demais óbvio, é impraticável um purismo absoluto que distancie, sem possibilidade de tangências e cruzamentos, a classe dos crentes intelectualmente preparados dos crentes de pouca instrução, o quadro votivo, como vínculo de ligação com o sagrado, nem sob a pressão desse cisma deixa de interessar a clientes mais abastados e mais ou menos instruídos (dos diversos graus da burguesia e da nobreza). De novo, esta conclusão vem das características da moldura e do quadro, dos índices de riqueza material aí inscritos, plano em que incidem regra geral as análises de especialistas[12], como decorre, e a este nível a crítica tem estado bem menos atenta, do exame da maior ou menor correcção e elaboração linguísticas da legenda. Mesmo atendendo a eventuais circunstâncias alheias à intervenção dos ofertantes (como erros ortográficos ou de pontuação da exclusiva responsabilidade do pintor), e aceitando como algo usuais certas deficiências de redacção numa época em que a escrita e a leitura, mesmo nas classes privilegiadas, eram sobretudo funcionais, é preciso atribuir a esta vertente da exegese a importância de que se reveste para uma compreensão mais correcta do quadro votivo enquanto objecto que exige uma abordagem tão interdisciplinar quanto possível. Se aliás conciliarmos os níveis de composição plástica, a complexidade e a minúcia do traço, a riqueza dos jogos de perspectiva, profundidade e cor, com a perfeição linguística, poderemos certamente associar o exemplar a um cristão socialmente favorecido e de gosto apurado e por isso interessado em contratar os melhores mestres, para desde logo poder demarcar-se do nível de expressão avaliado como rudimentar e naïf das classes que lhe são subalternas. Mas o que tal preocupação com a qualidade técnica e estética antes de mais revela é que entre a religiosidade a que chamamos popular e a religiosidade não popular ou culta, esclarecida, a diferença residirá não tanto na essência mas principalmente no modo de expressão do ser(-se) religioso (com a própria dimensão do quadro, que Rocha Peixoto estabelece entre 0,20m de altura por 0,16m de comprimento e 1,00m por 0,70m[13], numa média de 0,50m por 0,35m[14], a permitir completar a relação das provas relativas ao seu contexto social e económico de origem: os de maiores medidas apontam não poucas vezes para ofertantes mais opulentos). A todos estes critérios obedece um quadro “Mandado […] fazer em Agosto de 1860”: “José Joaquim Gonçalves, natural da frega. de S.Bartholomeu da Esperança deste Concelho, e reziden- / te no Imperio do Brazil, offereceu a N.Senhora de Porto d’Ave uma avultada esmóla, se elle e sua M.er D. / Maria Gonçalves naõ fossem acommettidos da Cólera morbus, e viéssem para sua caza libres / de perigo, o que tudo se vereficou: e dispenderaõ a ditta esmóla em um bom vestido para a / Senhora, um lustre devidro, compor o Orgaõ, e completar a Capella do Menino entre os / Doutores. Mandado este fazer em Agosto de 1860”[15].

Construídas com caracteres maiúsculos ou minúsculos, em letra cursiva ou de imprensa, ou cruzando os diversos tipos, as legendas concretizam o trânsito entre o que neste objecto é acontecimento, referência, e simultaneamente esteticidade, porque produto, sinal e compensação da interacção participada e comunicativa do ser humano com o meio. A comunidade não desconhece que a recepção da sua mensagem depende de um princípio de não contradição entre três níveis pragmáticos do texto: o locutório (valor assertório), o ilocutório (valores designativo, declarativo e promissório) e o perlocutório (valor provocativo ou persuasivo). As fórmulas iniciais, como “Milagre que fez”, “Mercê que fez”, “Oferecido a”, “Suplicando”, “Favor que recebeu”, quer destaquem, em primeiro lugar, o nome da divindade ou o nome do pagador, quer comecem por topónimos, quer relevem a acção, quer reduzam as coordenadas do acontecimento ao essencial ou as distendam, às vezes, numa profusão algo impressionante de pormenores, nunca descuram a intencionalidade de eficácia comunicativa. Mais: as legendas, de que raramente se prescinde, sancionam e não raro distendem a narrativa autobiográfica modelada na imagem. As mais longas – e aqui há que notar que a formulação vai desde o registo mais económico, com a indicação apenas do carácter ofertante do objecto e do nome do santo, passando por diversas equações que articulam informações como o nome do pagante, a divindade implicada, a graça recebida e a data, até ao averbamento mais pormenorizado[16] – aparentam-se aos contos ou a outras formas breves como o mito, contam uma estória e a história do mundo cristão (que se quer reino de não-morte): no essencial, uma narração interminável de dor, angústia e medo, mas também de esperança e alegria. Precisamente os eixos de correlação que João de Pina Cabral identifica nos diversos tipos de ex-voto, no artigo “Quinze anos depois”, a partir do equacionamento do conceito de “sacrifício”, operador teórico-antropológico que o autor define como “esse tráfico cruzado de força vital entre a divindade e as entidades sociais”[17]: “No caso presente somos levados a crer que todas estas ofertas e performances que assentam sobre o sofrimento são formas de sacrificar força de vida, por forma a obter mais força de vida; são, portanto, actos sacrificiais”[18].

O despojamento que caracteriza este acto pictural, nos meios técnico-artísticos como na representação da performance corporal dos agraciados, intensifica a entrega devocional das personagens humanas, que nunca aparecem colocadas no mesmo plano espacial e alegórico da divindade. O ex-voto pintado não é um simples objecto de troca (promessa e pagamento), mesmo se pode dizer-se que ele se ergue contra a interpretação (que não existe oculta ou mediada na imagem): é metáfora simbólica de uma quase completa exaustão que, no limite, por um sortilégio de sublimidade divina e regeneradora, se acende em vida. Tudo se conjuga para que desta linguagem iconográfica reste sobretudo à superfície a denotação de uma conotação que importa precisar denotativamente (para assim se garantir o que em cada usuário-fruidor é deriva plural de sentidos).

Numa tal adesão ao amor divino, cada corpo é uma morada da divindade. A cena iconográfica torna-se em momento de contemplação lírico-devota que proporciona chão e resguardo, posicionando-se os postulantes e os seus pares, intra e intergrupalmente, numa atitude de ontologização que nunca é de simetria em relação à divindade (nisto discordamos de um dos travejamentos da taxionomia proposta por João de Pina Cabral, no ensaio “O pagamento do santo. Uma tipologia interpretativa dos ex-votos no contexto sócio-cultural do noroeste português”[19]). Paga a promessa, o quadro continua a recolher e a pensar o medo do mundo. Porque a vida é o mais completo e o mais complexo dos jogos de morte. A demonstração pública da dádiva, mesmo se na sensibilidade que une o crente religioso ao divino há quocientes avultados de sentimento de pertença, não suplanta minimamente o intrincado contínuo de amor, humildade, resignação, confidência, piedade e temor por que se estabelece o contacto com uma rede de entidades pensadas como infinitas, omnipotentes, ubíquas e perfeitas. O mero exercício de análise linguística e semântica das legendas aponta de imediato na direcção do irredutivelmente piedoso.

Situamo-nos, pois, num campo de estudos extremamente complexo e vasto, a que a focalização comparatista, no caso com o ex-voto brasileiro, vem trazer maior amplitude e profundidade, na natureza como no significado destes artefactos, no seu formato como nos seus suportes, na sua composição como na sua autoria. A experiência do painel votivo é um dos paradigmas da experiência de comunicação cristã, na medida em que nele a conexão entre o comunicável e o incomunicável, o partilhável e impartilhável, a criação e a recepção, o dar e o receber, configura um paroxismo de inter-subjectividade, intuitiva e indizível, emocional e sedutora, mas também de partilha concreta e criadora no mundo concreto, com autêntico sentido religioso apenas para o crente. A experiência estética que se lhe associa, enquanto experiência de pacificação e equilíbrio, é experiência de verdade e vida: dela decorre o dizer do ex-voto.

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] “Etnographia portugueza. Tabulae votivae (excerpto), in Portugalia, tomo II, fasc. 2.º, Porto, 12 de Maio de 1906, p. 196. Republicado no vol. I – Estudos de Etnografia e de Antropologia, das Obras de Rocha Peixoto, organização, prefácio, notas e índices de Flávio Gonçalves, Porto, 1967, pp. 187-216. Republicado in Rocha Peixoto, Obras, organização, prefácio, notas e índices de Flávio Gonçalves, vol. I – Estudos de Etnografia e de Antropologia, Porto, Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, 1967, pp. 187-216.

[2] Na Arte Popular dos Ex-Votos – Os “Milagres”, separata da Revista de Guimarães, vol. LXXX, Guimarães, 1970, p. 7.

[3] Cf. “Milagre feito pelo Senhor Bom Jesus de Fão…”, quadro votivo de finais do século XIX, “fotografia aguarelada”, com 266 x 333 mm, in Estórias de Dor, Esperança e Festa: o Brasil em Ex-Votos Portugueses (Séculos XVII-XIX), coord. de Mafalda Soares da Cunha, coord. científica de Agostinho Araújo, textos de Agostinho Araújo, Deolinda Carneiro e Joaquim Oliveira Caetano, fotogr. de Laura Castro Caldas e Paulo Sintra, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998.

[4] Lisboa, Quetzal Editores, 2003, p. 59. Para além deste catálogo temático recentemente editado, existem, no que diz respeito a publicações ocorridas nos últimos anos, pelo menos mais dois títulos que merecem aqui uma referência: Milagre q Fez, textos de Luís Quintais, José António O. Bandeirinha, Carlos Vidal, Alberto Correia, Teresa Perdigão, João de Pina Cabral, Coimbra, Museu Antropológico da Universidade de Coimbra, 1997.; e Estórias de Dor, Esperança e Festa: o Brasil em Ex-Votos Portugueses (Séculos XVII-XIX), coord. de Mafalda Soares da Cunha, coord. científica de Agostinho Araújo, textos de Agostinho Araújo, Deolinda Carneiro e Joaquim Oliveira Caetano, fotogr. de Laura Castro Caldas e Paulo Sintra, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998.

[5] “Etnographia portugueza. Tabulae votivae (excerpto) cit., pp. 187-212. Republicado no vol. I – Estudos de Etnografia e de Antropologia, das Obras de Rocha Peixoto, organização, prefácio, notas e índices de Flávio Gonçalves, Porto, 1967, pp. 187-216. Republicado in Rocha Peixoto, Obras, organização, prefácio, notas e índices de Flávio Gonçalves, vol. I – Estudos de Etnografia e de Antropologia, Porto, Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, 1967, pp. 187-216.

[6] Idem, pp. 187-188.

[7] Idem, p. 188.

[8] Idem, p. 190.

[9] Ex-votos do Museu Etnológico Português: Catálogo Descritivo, Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa, 1915, pp. 5-6 (separata de O arqueólogo Português, vols. XIX e XX).

[10] Idem, p. 8. Cerca de três décadas depois, o mesmo investigador resumiria a sua visão nestes termos, baseando-se em elementos socioeconómicos: «Na Idade Média também as tabulae votivae eram quadros oferecidos pelos devotos agradecidos. As dimensões reduziram-se com o andar dos tempos, e depois, enquanto uns agradeciam milagres com altos trabalhos de arte, outros recorriam às suas possibilidades, e serviam-se de quadros menores, portáteis, pintados por pintores anónimos, humildes ou rudes. O resultado foi encontrar-se o filão dos “milagres populares”» (A Arte Popular. Aspectos do Problema, Porto, Portucalense Editora, 1943, p. 101).

[11] Duas Tábuas Votivas do Norte de Portugal, separata do vol. V das Actas do V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, Coimbra, 1968, p. 9.

[12] Cf., na obra As Formas do Espírito. Arte Sacra da Diocese de Beja, direc. de José António Falcão, tomo II, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2003, a descrição pormenorizada e competente de alguns painéis (pp. 114-147).

[13] No artigo “Ex-votos da região de Arouca: um corpus mágico da religião popular, ou uma terapêutica popular contra o mal” (in Rurália, n.º 1, Arouca, Conjunto Etnográfico de Moldes, 1990, p. 48), Fernando Matos Rodrigues indica valores máximos acima daqueles: 1,25m por 0,71m.

[14] “Etnographia portugueza. Tabulae votivae (excerpto) cit., p. 192.

[15] Estórias de Dor, Esperança e Festa: o Brasil em Ex-Votos Portugueses (Séculos XVII-XIX) cit., pp. 98-99.

[16] O caso mais surpreendente que conhecemos é o do “Milagre de Nossa Senhora da Penha de França a José dos Santos Ferreira”, construído numa espécie de mosaico em quatro figuras, para as quais a legenda, com os seus mínimos pormenores cronológicos, espaciais, materiais, logísticos, etc., remete criteriosamente, desdobrando-se, antes de mais, nas funções documental e informativa (Estórias de Dor, Esperança e Festa: o Brasil em Ex-Votos Portugueses (Séculos XVII-XIX) cit., pp. 72-73).

[17] In AA. VV., Milagre q Fez cit., p. 111.

[18] Idem, p. 119.

[19] In Studium Generale: Estudos Contemporâneos, n.º 6, “Religiosidade Popular”, Porto, 1984, pp. 97-112.