Nogueira, Carlos. A stira em poetas popularizantes e populares portugueses (de Joo de Deus  a Antnio Aleixo). Culturas Populares. Revista Electrnica 3 (septiembre-diciembre 2006).

http://www.culturaspopulares.org/textos3/articulos/nogueira1.htm

ISSN: 1886-5623

 

 

A stira em poetas popularizantes e populares portugueses (de Joo de Deus a Antnio Aleixo)

 

 

 

Carlos Nogueira

 

Resumo

Analisamos neste artigo a stira na poesia de Joo de Deus e Augusto Gil, luz do conceito de popularizante ou de popularismo esttico, e, entre outros, de Antnio Aleixo, para o que convocamos o conceito de popular tradicionalista.

Palavras-chave: Poesia, culto / popular, stira

 

Abstract

This paper analyses the satire in the poetry of Joo de Deus and Augusto Gil, characterizing their aesthetics as having a popular like character. It also considers the popular poetry of

Antnio Aleixo, this one situated in a traditional style trend.

Keywords: Poetry; cult / popular; satire.

 

 

J

oo de Deus tem sido sobretudo valorizado como poeta de um lirismo puro, cristalino, que se consubstancia numa expressividade prosdica, num imagtica, num metaforismo e num lxico radicados, antes de mais, numa desafectao geralmente conotada com simplicidade e espontaneidade, tonalidades, contudo, como bem notaram Costa Pimpo e, com ele, David Mouro-Ferreira[1], porventura muito mais aparentes do que reais. O que o autor da Cartilha Maternal desde logo traz de novo, que o mesmo dizer o que cumulativamente lhe proporciona um lugar em tudo parte na poesia do seu tempo, o afastamento de qualquer declamao presunosa e a adeso a uma potica popular, oral ou de inspirao popular e tradicional. Donde podermos falar no rejuvenescimento do lirismo pela dialctica entre a intimidade do poeta que procura uma notao precisa de ambientes e personagens e uma naturalidade muito pensada que se reveste da pigmentao de sinceridade reconhecida ao patrimnio literrio oral.

Em autonomia irrestrita relativamente ao cruzamento de escolas literrias que marcam o nosso panorama oitocentista, Joo de Deus pratica pois uma stira resolutamente antioratria, inscrita numa matriz oral popular de lastro vocabular pouco variado, caracterstica alis comum a toda a sua lrica. Tal formulao tcnico-discursiva no significa todavia a categrica petrificao de cada texto e do macrotexto. Dos circuitos do poema desprende-se uma irradiao cantante e encantatria atravs da qual Joo de Deus entronca de imediato na melhor tradio do repentismo portugus. O sortilgio da produo satrica do poeta encontra-se na combinao da voz do cantador popular com a letra impressa, na engenharia estilstica de repeties, interrogaes, exclamaes, anacolutos, trocadilhos, plebesmos, populismos, coloquialismos, sintaxes elementares, simetrias e dissimetrias, na, numa palavra, fluncia discursiva que vem directamente da linguagem quotidiana e prosaica.

Os acordes dessa suposta expresso directa de pensamentos, sentimentos e emoes retinem nos diversos vigamentos mtricos e nos mltiplos esquemas estrfico-rimticos, desde a maior sofisticao da oitava decassilbica e do soneto at maior singeleza da quadra, de cuja brevidade e aparente escassez de recursos procede a sensao de improviso daquela que a estrutura poemtica por excelncia do povo (entendido aqui num sentido muito amplo) portugus. Essa diversidade de formas previne em grande medida a displicncia e a insipidez que afectam todos aqueles que no sabem servir-se com destreza da tecnologia da oralidade. O tom de performance oral torna o poema mais real e genuno, potenciando a relativa riqueza de temas de um poeta que se quer especialista da vox populi, agente, por conseguinte, que d congruncia cognitiva e emocional experincia individual e colectiva: um bardo, como confessa nas suas Prosas, epteto com que Joo de Deus tambm logo salienta que o que o mobiliza no um iderio poltico-social e cultural construdo atravs de um intenso labor intelectual, maneira da gerao de 65, mas uma panormica da sociedade portuguesa baseada em observaes flagrantemente sagazes.

, no mnimo, um erro grosseiro exigir de Joo de Deus aquilo que ele nunca procurou nas suas 96 (ou 102, se contabilizarmos como um texto autnomo cada uma as 6 variaes em 133 quadras de Uma mo de variaes e cada um dos dois blocos do poemeto Marmelada) peas satricas publicadas no Campo de Flores (1893): uma teoria, ndices inequvocos de actualizao cultural e anlise crtica em profundidade. Mas daqui no se deduza que as suas stiras e epigramas e os seus poemetos se esgotam no estritamente circunstancial e anedtico. Se verdade que essas categorias constituem com frequncia o primeiro revestimento do poema, no menos claro que s uma leitura muito apressada e preconceituosa poder ignorar quer a j referida engenhosa capacidade verbal quer a franqueza de quem oferece, se no ideias ou, sobretudo, solues, pelo menos factos reconhecidamente substanciais; uma pequena cartilha do mais acendrado civismo[2], na excelente frmula de Vitorino Nemsio, estudioso que percebe como poucos a originalidade da obra deste mestre do discurso oral, interventivo, que agita, incomoda, suscita reflexes, controvrsias, simpatias e dios. Poesia e moral, oralidade e escrita: eis os pares dialcticos que estruturam uma stira manifestamente mais comunicativa e universal do que muita da poesia panfletria sua coetnea.

Mau grado a incompreenso de um certo senso comum e de certos crticos face a um estilo e a um esprito jogralescos, face, em especial, a alguma linguagem mais vulgar[3] (nas duas quadras do soneto Balo, por exemplo, l-se: Quando vejo uma lesma empavonada,/ Vir de saia-balo toda espavento,/ E as velas todas desfraldando ao vento,/ De vento em popa reduzir-se a nada:// Lembra-me ver sardinha alcachofrada/ Apostrofando ao hmido elemento/ Que alargue um pouco... quer tomar assento.../ Arrotando-lhe postas de pescada![4]), a stira de Joo de Deus expanso em formas dinmicas que inventam o futuro a partir do presente mais imediato, tanto nos referentes convocados como na matria verbal que os corporiza em tecido potico. Nesta memria-poesia, a inventividade ldica atravs da qual o poeta revela o seu carcter social no turva a intensidade de nveis de pensamento e sentimento que so demanda criadora e polmica de horizontes imprevistos de sentido e autenticidade. Do estmulo rtmico imediato, do sabor da sugesto auditiva, vem a relao do ouvido potico com a fala quotidiana, e a centralidade da equao pessoalidade / sinceridade, indispensvel numa poesia que nada rejeita como seu objecto (lembremos o suplemento de distribuio gratuita Cryptinas, que agrega poemas satricos de molde fescenino, incorporado na edio de 1897, a que Tefilo Braga ape o rtulo, quer dizer, o estigma, de poesias de leitura restrita).

Sem de modo algum corresponder, como se sabe, a um militante activo da Questo Coimbr, Joo de Deus considerado um dos seus homens, ou um seu precursor, se pensarmos nas stiras impessoais, veementes e objectivas que, desde cedo, da sua tribuna estudantil, enderea ao ambiente acadmico, religioso, cultural e poltico-social do seu pas. No seu primeiro texto publicado, A Lata (1860), poemeto com 60 estrofes em oitava rima de eco camoniano e verso decasslabo, a retrica aplicada, tanto a estritamente lingustica como a ideolgico-poltica, aproxima a obra do tom declarativo, dramatizante e apostrofante caracterstico dos poetas da escola de Coimbra: E esses lobos que em duas patas andam/ Para ter sempre em guarda as outras duas;/ Que a monte saem s, e s debandam/ Como os ladres, noite, pelas ruas;/ A empecer que os nimos se expandam,/ Que a luz se espalhe, e que as imagens tuas,/ Bom Deus! de imagens passem... e que admira/ Sem o sopro que ao barro a vida inspira![5]. Mas j neste poema anticlerical que discute o problema do celibato e louva as virtudes femininas (da me, da esposa), a ironia, o burlesco e o sarcasmo constituem os instrumentos, como que radicados na vida psquica e pragmtica comunitria, com que o poeta mostra no ser o seu caminho o da linguagem potica preestabelecida: Foi esta ao menos a resposta dada/ A quem de padres entendia tanto,/ Que inda os fulgores dessa luz sagrada/ A Brandes mesmo metem pejo e espanto:/ Deixai que o padre tenha esposa amada!/ Gritava em Trento o arcebispo santo;/ Quando um finrio, que j santo, ao ouvido/ Lhe disse: – Muitas melhor partido –[6].

Joo de Deus corrige-se entretanto no sentido da expurgao desse arroubamento veiculado de modo algo solenizante, patente, desde logo, na publicao, em 1868, do longo poemeto Marmelada, que invectiva, em geis quadras  heptassilbicas de porte repentista, o ex-frade crzio e professor de Dogmtica Vitorino da Conceio Teixeira Neves Rebelo, apodado pelos estudantes de Doutor Marmelada, devido s suas falas melfluas e, alegadamente, sua incompetncia: Marmelada, Marmelada!/ Antes c melhor viera/ Quem te mandou: pois no era?/ Tu disto no pescas nada!// [...]// No dizes seno asneiras,/ E ainda em cima botando/ Teu R de vez em quando!/ H maior impertinncia?[7]. Os poemas, j o dissemos, so os de um perito da memria que comenta paradigmas segundo os quais a comunidade deve organizar-se, metabolizando, pela sua prpria linguagem, o pensamento individual de cada elemento do colectivo.

Os temas evocam e articulam problemas da experincia do mundo partilhado. De entre os vrios textos de interveno sociopoltica, e sem querermos, obviamente, enumerar e comentar todos os poemas de qualidade, isolamos aqui dois que consideramos de grande nvel: O dinheiro, porventura a stira que mais contribui para que se identifique e reifique Joo de Deus com a categoria de (do) poeta popular apto a usar no s a linguagem da persuaso mas tambm a da demonstrao (O dinheiro to bonito,/ To bonito, o magano!/ Tem tanta graa o maldito,/ Tem tanto chiste o ladro!/ O falar, fala de modo.../ Todo ele, aquele todo.../ E elas acham-no to guapo!/ Velhinha ou moa que veja,/ Por mais esquiva que seja,/ Tlim!/ Papo.// [...]// Aquela fisionomia/ E lbia que o demo tem!/ Mas numa secretaria/ A que v-lo bem!/ Quando ele de grande gala,/ Entra o ministro na sala,/ Aproveita a ocasio:/ Conhece este amigo antigo?/ – Oh meu to antigo amigo!/ (Tlim!)/ Pois no![8]), e A monarquia, com a sua antfrase apuradamente operativa (Andam a dizer mal da monarquia,/ Mas sem razo, falemos a verdade;/ Porque aos bons ningum d mais garantia/ Nem pune aos maus com mais severidade.// Nunca paixes de certa qualidade/ Prevaleceram contra o que cumpria,/ Nem consta que inspirasse a iniquidade/ Despacho, lei, decreto ou portaria!// H setecentos anos simplesmente/ Que este sistema nos governa, e vede/ Comrcio, indstria, tudo florescente.// Os caminhos de ferro uma rede!/ E quanto a instruo, toda esta gente/ Faz riscos de carvo numa parede[9]).

A sua actividade de pedagogo expressa-se directa ou indirectamente em mltiplos textos sobre vocabulrio, ortografia e pedagogia: avulta, por exemplo, na extensa stira Uma mo de variaes, que trata especificamente de mtodos de leitura, atravs de um bem urdido acometimento (de trama burlesca, envolvendo deuses da mitologia clssica) sobre um dos seus contendores na matria, a que o subttulo – Sobre a teima do maestro Cirne – confere desde o incio o necessrio enfoque.

Para alm daqueles veios temticos mais salientes, a stira de Joo de Deus dispersa-se ainda por outros ncleos cruciais (imperfeies de um pas convencional, inculto, burocrtico e agrcola), como os desgastados padres retrico-literrios (o humor do poema Rimas reverte em sensata e instrutiva reflexo sobre a liberdade potica: Meu amigo Silva Gaio,/ Em rimas no sobressaio,/ Mormente rimas em aio;/ Mas dcil como um lacaio/ Aos deveres que contraio,/ Aos quais nunca me subtraio,/ Saiba que montei no baio/ Que pgaso em que saio,/ E porta do Gil Malaio,/ Indo a passar de soslaio,/ Bispa aveia num balaio,/ Avana-se como um raio,/ No solavanco descaio/ E com tal fora retraio/ As rdeas, que as parto e caio!/ [...]/ Adeus! que vou ao ensaio./ Lisboa, trinta de maio./ Seu do corao,/ Sampaio[10]); o sentimentalismo ultra-romntico (na glosa Ao neto das minhas tias, por exemplo: Dezasseis tbuas no tecto,/ Quatro vidros cada porta,/ Sinal de bens de mo morta,/ Sinal de criado preto;/ Arrastar a vida inquieto,/ Cantar como Jeremias,/ Ou deslindar fidalguias/ De genealgico arbusto,/ So coisas que metem susto/ Ao neto das minhas tias[11]); a maledicncia tpica dos portugueses, perdidos na desconfiana de quem nada ou pouco faz ou cria, de quem apenas condena a partir da segurana e do marasmo do caf, dicacidade que pontifica nos compadres da pitoresca stira dos Caturras; o vcio dos jogos de sorte; a falta de hbitos de higiene; a venalidade dos jornais; as crendices populares ou o gosto ocioso pela celebrao de qualquer efemride; os excessos nobilirquicos e a hipocrisia dos valores e costumes burgueses.

O legado de Joo de Deus, no lirismo candidamente intimista, afectivo e melanclico, repassado a espaos de um comovido humanitarismo romntico, como no lirismo epigramtico e satrico de, nas duas vertentes, inspirao oral, popular, tradicional, tem um reputado epgono em Augusto Gil, que alis faz questo de salientar o ascendente recebido nas dedicatrias de duas das suas obras: no seu livro de estreia, Musa Crula, escrito entre 1891 e 1893, e publicado no ano seguinte, e, vinte e dois anos mais tarde, na Sombra de Fumo, aqui com um substancial acrscimo de solenidade que vem da epgrafe, decalcada em Dante[12], Tu duca, tu signore, tu maestro.

Mau grado o seu estatuto de republicano militante, Augusto Gil praticamente no adere poesia de interveno social, seja na modalidade de panfletarismo satrico seja na de panfletarismo elegaco e melanclico[13], o que significa que permanece vlida para o conjunto dos seus livros a doutrina potica preconizada no poema de abertura, Profisso de f, da sua primeira obra: No vo pensar que a minha musa seja/ Alguma apario alucinante/ De olhar azul e lbios de cereja,/ Diadema doiro e espada flamejante.// A musa protectora destes versos/ Detesta a rima altiva dos panfletos,/ Educa-me em princpios bem diversos:/ L-me Petrarca, o mestre os sonetos.// No me ensina a cantar imprecaes/ Contra as torpes gangrenas mundanais,/ Inspira-me somente estas canes/ Que vos falam de amor – e nada mais[14]. A um programa (romntico) de substncias e intencionalidades confessionais correspondem, pois, princpios formais de essncia clssica, no que se recusa qualquer inclinao pretensiosamente aristocrtica, esteticista e antimimtica, na sequncia alis do manifesto preambular e epigrfico colhido em Ea de Queirs: Para fielmente contar o que sinceramente sente, no so necessrias ao poeta essas formas novas que devem rutilar de inauditismo[15]. Em 1919, no no menos lcido prefcio (acrescido, de resto, de uma maturidade que vem das experincias vivenciais e literrias do poeta processadas ao longo de vinte e cinco anos) de autocrtica retrospectiva que acompanha a segunda edio dos seus Versos (1898), Augusto Gil refere-se, contudo, como marca das suas primeiras obras, a uma certa artificialidade, prpria do sincretismo literrio coimbro dos anos 90. Na stira, esse cruzamento de influncias, com diversos graus de assimilao, do Realismo-Naturalismo ao Neo-Romantismo de sentido lusitanista e ruralista (denominao usada por Jos Carlos Seabra Pereira), do Parnasianismo ao Decadentismo-Simbolismo, prolonga-se para l do ponto de viragem prescrito nesse texto de sntese esttica. A misantropia ironicamente descrente e escarninha do poema Tarde aziaga, que assume um certo pendor realista de confisso e descrio urbana Cesrio Verde, nos seus caractersticos quartetos decassilbicos, com alguns rasgos baudelairianos tanto no plano semntico-pragmtico (nas bizarrias satnicas que deformam humorstica e funebremente o real, na revolta contra o grotesco e o aviltamento sociais) como no plano das novas aquisies tcnicas (na expresso musical de apuro contidamente parnasiano e verlainiano, a qual aproveita deste formalismo o rigor analista no levantamento do pormenor concreto do dia-a-dia)[16], todo esse registo temtico-formal, dizamos, atravessa tambm, na Avena Rstica, de 1927, as composies A confisso irnica dum sentimental ou Per amica silentia (Em dbil toada e com sopro enfermo/ Distraio-me a tocar frauta de cana/ Para encurtar as longas horas do ermo/ Com que a minhalma tmida se irmana.// [...]// Neste tumulto dissonante e rudo/ E nesta vil charrice engalanada/ Onde qualquer medocre chega a tudo,/ – Eu sinto a doce glria de ser nada...// Alcunham-se os besouros de guias reais!/ Se a luz do sol o acusa e alumia,/ Pretende ter fulguraes astrais/ O lixo erguido pela ventania...// No temo a fria de improprios vos/ Quando, no fim dos fins, tudo soobre./ Esto limpas de culpa as minhas mos!/ – Abro-as e mostro a minha avena pobre...[17]).

Este rasto de fcil reconhecimento no impede todavia uma evoluo que j se pressente no volume dos Versos, particularmente no poema amoroso de circunstncia e denteado satrico Art. 1056 do cdigo civil (Oia, vizinha: o melhor/ combinarmos o modo/ De acabar com este amor/ Que me toma o tempo todo.// Passo os meus dias a v-la/ Bordar ao p da sacada./ No me tiro da janela/ No leio, no fao nada...// [...]// Ao diabo mando as leis/ Com excepo dum artigo: O mil e cinquenta e seis.../ Quer conhec-lo? Eu lho digo:// Casamento um contrato/ Perptuo. Este adjectivo/ Transmuda o mais lindo pacto/ No assunto mais repulsivo.// Perptuo! Repare bem/ Que artigo cheio de puas./ Ainda se no fosse alm/ Duma semana, ou de duas...// Olhe: tivesse eu mandato/ De legislar e poria:/ Casamento um contrato/ Duma hora – at um dia...// Mas no tenho. pois melhor/ Combinarmos algum modo/ De acabar com este amor/ Que me toma o tempo todo[18]), no sentido de uma seleco de contedos e formas, aliviada de injunes epocais. Em Luar de Janeiro, de 1909, um poema como Meditaes sobre temas do Eclesiastes, constitudo por seis seces que, nas palavras de scar Lopes, modulam a velha sabedoria salomnica num ar falado, sarcstico ou corriqueiro[19], anlise a que conviria acrescentar o gosto discreto por um certo requinte lexical, sintagmtico e versificatrio (Semeador de iniquidades,/ Por que que mandas sobre os teus iguais?!/ O mando o que ? Vaidade de vaidades,/ Fumo que ao desfazer-se alarga mais...// Oh minha vista o que que foi que viste/ C neste mundo impiedoso e rudo?// Que s a vaidade existe/ – Em todos ns, e em tudo!...[20]) e por uma certa elaborao espacial da mancha grfica (na disposio dos versos nas estrofes e na articulao entre elas, mais direita ou mais esquerda), ou uma composio como De profundis clamavi ad te domine, que ao discurso da melancolia coliga uma brusca mordacidade religiosa (Ao charco mais escuso e mais imundo/ Chega uma hora no correr do dia/ Em que um raio de sol, claro e jucundo,/ O visita, o alegra, o alumia;// Pois eu, nesta desgraa em que me afundo,/ Nesta contnua e intrmina agonia,/ Nem tenho uma hora s dessa alegria/ Que chega s coisas mais nfimas do mundo!...// Deus meu, acaso a roda do destino/ A movimentam vossas mos leais/ Num aceno impulsivo e repentino,// Sem que na cega turbulncia a domem?!/ Senhor! No um seixo o que esmagais;/ Olhai que – o corao dum homem!...[21]), alternam com uma produo de grande pblico inspirada na poesia oral popular cancioneril de tema (real ou parodicamente) sentimental. A mundividncia de Augusto Gil tem a, alis, uma das suas principais obsesses semnticas. Desde o seu segundo livro, com efeito, que se prenuncia o tom induzidamente misgino, escarnecedor e grosseiro pronunciado nessa obra singular, percorrida por um indelvel pathos passional e ertico-sexual, que O Canto da Cigarra (Stiras s Mulheres), a que a crtica poucas vezes tem outorgado aqueles que so certamente, do ponto de vista antropolgico e ontolgico, os seus crditos de maior merecimento: o cinismo e o descaro impressivamente humanos, a respirao sobressaltada de um homem que se preserva no impulso de coaco do outro, a disperso de um corpo e de uma alma que procuram fundir-se numa mesma unidade.

No prefcio, datado de Novembro de 1909, a essa obra, o poeta imputa o antifeminismo que nela transparece, muito atenuado nas obras subsequentes, a um acesso de bulimia cientfica em que devorei a esmo, numa pressa voraz e sem a imprescindvel mastigao crtica, quanto de maior se dava estampa[22], culminando essas leituras com La Donna Delinquente de Lombroso. Como quer que seja, parece bvio que a consequncia prtica de tal bibliografia numa coleco que, literariamente, para l de algum mau gosto e de alguma monotonia remtica de que tambm enferma, assimila do hipotexto oral a sensibilidade transindividual e comunitria, provida pela familiaridade da liquidez das formas prosdicas, das imagens e da linguagem (expresses e versos formulsticos do cancioneiro popular, expresses idiomticas ou provrbios, por exemplo), no foi seno a de exacerbar no autor uma misoginia de rdua superao, porque radicada numa incmoda deficincia fsica (o prprio Augusto Gil, poeta popularizante, insista-se, que s vezes imita criativamente o melhor do jeito irrequieto dos cantadores populares, sobretudo dos peritos nos desafios, o confessa, simulando uma altivez que apenas, provavelmente, desgosto: ҃ coxo!... disseste a rir./ E sou. Arrasto um dos ps;/ Quero e no posso fugir/ De crias do teu jaez...[23]) e porventura, dentro da disposio falocntrica to em voga na poca, na perplexidade reprovadora que lhe suscitam as movimentaes feministas e sufragistas.

A concluir o mesmo texto preambular, Augusto Gil afirma ter revisto a sua viso da mulher j depois de escritas as composies de O Canto da Cigarra, enquadrando aquilo que considera os inmeros defeitos dela – como a mentira, a dissimulao e a sensualidade – num contexto que a preserva de qualquer responsabilidade: esses defeitos v-os como resultantes mecnico-anmicas da subalternidade em que sempre tem vivido e da generalizada corrupo contempornea. Com irnica ambiguidade, aps recordar que a legislao mais avanada continua a exercer sobre a mulher nveis mal disfarados de degradao e servido, o autor observa que voltei a ser, se no o antigo adorador do eterno feminino, pelo menos um amigo das mulheres.... Mais: Repeso e contrito, aqui brado urbi et orbe, pela boa de Salomo, que o riso o erro e que vmente o mofador busca a sabedoria. Logo a seguir, porm, adverte: Mas olhem que no poucas destas stiras tm algum tanto parecido com o que Eduardo de Artayett vincou numa imagem de gnio: Rindo, como uma lgrima que endoidecesse[24]. Assim legitima Augusto Gil, num enunciado agora menos comprometido com a tcnica da captatio benevolentia, o que para ele, que ri e chora para no endoidecer, sobretudo da ordem do drama profundamente pessoal. E se certo que essa misoginia – que no afecta, antes potencia, aqueles momentos em que o sujeito comunica, implcita ou explicitamente, um desejo (in)tenso de participar nos prazeres da harmonia conjugal, patente num itinerrio potico que inclui poemas to significativos como Conselhos... (Corao ambicioso,/ Deixa-a l! Anda comigo.../ Por um amor duvidoso,/ No deixes um bom amigo.// [...]// O tempo da Minha Dama/ Desfez-se com o passado./ Agora j no se ama/ Seno com bom ordenado...), do livro de 1898[25], ou Um gro de incenso (Entraste com ar cansado/ Numa igreja fria e triste./ Ajoelhei-me a teu lado/ – E nem ao menos me viste...// Ficaste a rezar ali,/ Naquela imensa tristeza./ Rezei tambm, mas a ti,/ – Que aos anjos tambm se reza...// Ficaste a rezar at/ Manh dentro, manh alta./ Como que tens tanta f/ – E a caridade te falta?...) e In promptum pastoral (Amar alguma pastora/ Com palavras e com obras./ Estas senhoras de agora/ So mais falsas do que as cobras...// E ver criar com carinho,/ Com cuidados infinitos,/ companheira, um filhinho.../ E s ovelhas, borreguitos...), da obra de 1909[26], – se essa misoginia, dizamos, parece resolver-se (ou atenuar-se) com o casamento do poeta em 1912, que com certeza acarreta uma reviso das interrogaes de homem sobre a sua virilidade, agora que ao objecto feminino de desejo corresponde uma objectivao inscrita na pauta da conjugalidade, nem por isso deixam de surgir vestgios da sua persistncia nas ltimas obras, como em O Craveiro da Janela, de 1920 (– Senhoras, se o que pensais/ Deixasse vestgios claros,/ Os divrcios eram mais/ E os casamentos bem raros[27]), ou na j mencionada Avena Rstica (em A confisso irnica dum sentimental: Repugna-me pisar uma formiga;/ E assassinava e punha num frangalho/ Aquela filha de no sei que diga/ Que ontem beijei – e que cheirava a alho![28]).

A dicacidade ertica daquela ltima estrofe lembra um pouco o prosasmo das composies inditas de Augusto Gil, as mesmas que Natlia Correia destina para a sua Antologia de Poesia Portuguesa Ertica e Satrica, no porque condescenda face ao seu teor de anedota confinada a especulaes escatolgicas, mas porque lhes corresponde o interesse de pertencerem a um poeta muito popular[29] (veja-se a Noite de npcias: Enquanto despia o fraque/ junto do leito do noivado,/ escapuliu-se-lhe um traque/ de timbre aclarinetado...// A noiva olhou-o de lado,/ e ps-se, com ar basbaque,/ a remirar o bordado/ das botinas de duraque...// Houve, aps esse momento,/ naquela noite de gala,/ um duplo constrangimento.// E o noivo disse-lhe ento:/ Oh filha, cu que no fala/ cu sem opinio...[30]); composies, tambm, do gnero das que o prprio autor, num exerccio de autocensura, ter preferido no integrar nas Stiras s Mulheres, seja porque aquelas de que porventura dispe no as selecciona para esse livro nem para as obras posteriores, seja porque simplesmente no reconstitui o conjunto mais ousado que faria parte do manuscrito esquecido num quarto de hotel (a ser exacto o que divulga no incio do prefcio a O Canto da Cigarra). Efectivamente, sobre os textos que so objecto de reconstituio (no mais, no mximo, do que metade do texto original), diz: escrevi as stiras que adiante imprimo, mas desbastadas, agora, das suas mais cortantes arestas[31]. Em Augusto Gil – Notas sobre a Sua Vida, a Sua Doena e a Sua Morte. O Seu Esplio Literrio, Ladislau Patrcio alude igualmente censura que ele prprio exerce sobre alguns dos inditos do autor com o qual conviveu pessoalmente: Pertencem a esta fase da doena certos versos humorsticos que ele me leu um dia galhofando, e que encontro agora entre os seus papis. Poucas vezes graa mais peregrina ter servido assunto to ingrato. Silva esotrica para os raros apenas – no se publicam neste volume[32]. O que confirma o que se salienta logo na Explicao Prvia: Evidentemente que nem tudo do referido esplio pode vir a lume; mas aquilo que consiga satisfazer a curiosidade dos inmeros admiradores do poeta sem comprometer a reputao deste, entendi que no devia soneg-lo[33]. De entre os textos recolhidos, interessa-nos referir aqueles que Ladislau Patrcio rene sob o ttulo Os Machacazes (Perfis), caricaturas de agrado circunstancial e desapiedado, publicadas em jornais, algumas anonimamente ou com o pseudnimo Jacob-Ino, em que se recorta, em verso correntio, a silhueta de dez personalidades intelectuais do tempo, a comear pelo extenso Fialho de Almeida (O dia de um homem de gnio): Lisboa. Actualidade./ Aposento de hotel/ Forrado de papel.// O mestre dorme com serenidade.// Nisto, um despertador retine e chama/ Com frenesi, com raiva, com clamor./ O mestre acorda, senta-se na cama,/ – E pe o resplendor./ Nos vidros entra a luz deliquescente/ Dum destes dias hibernais, falazes,/ Em que faz sol e chuva juntamente.// O mestre coa-se; irradia gases;/ V-se num espelhinho de algibeira;/ Faz a si prprio uma profunda vnia;/ E a seguir dilata as ventas, cheira.../ – E queima papel da Armnia[34]).

Se, como vemos, o conceito de popularismo esttico, quer dizer, a adeso e a apropriao da lngua literria oral popular por parte de um autor dito letrado, culto ou de elite, vlido para o estudo de Joo de Deus e Augusto Gil, poetas que integram uma consequente tradio popularizante que atravessa toda a literatura portuguesa, j para um Antnio Maria Eusbio, um Manuel Alves, ou, um pouco mais tarde, um Antnio Aleixo – que, neste estudo, para uma anlise algo mais detalhada, elegemos, por razes bvias (o ser ele uma espcie de instituio nacional e/ou um emblema de um tipo de cultura e de poesia), como representante do universo literrio que Joo David Pinto Correia denomina de literatura popular tradicionalista[35] –, a utensilagem terica deve contemplar um princpio histrico-cultural que opera desde logo a ciso entre os campos popularizante e tradicionalista: o conceito de povo enquanto grupo, a que Antnio Aleixo consabidamente pertence, que ocupa o lugar da subalternidade no sistema de distribuio social das possibilidades de acesso cultura, riqueza material e imaterial e s deliberaes sociais efectivas.

No final do sculo XIX e incio do sculo XX, Manuel Alves, o Cavador, e Antnio Maria Eusbio, o Calafate, constituem dois casos muito salientes de sucesso junto das camadas da populao ditas populares, de socializao da palavra potica, por conseguinte, e decerto tambm junto de cidados da elite letrada, ou no beneficiassem ambos do apreo entusiasmado de escritores de renome: Toms da Fonseca apresenta o livro do primeiro, Versos dum Cavador (1900), e Guerra Junqueiro prefacia o do segundo, Versos do Cantador de Setbal (1901), isto para alm das palavras de considerao crtica que os dois poetas e cantadores suscitam a outras importantes personalidades da cultura e da literatura portuguesas, como Ramalho Ortigo, Tefilo Braga e Afonso Lopes Vieira.

A espcie de aura que se associa a estes poetas no decorre apenas da habilidade com que executam a tcnica versificatria, nem muito menos das composies em que celebram temas e motivos que se exaurem na mais insignificante circunstancialidade (a homenagem a uma figura de relevo social, o louvor nacionalista ou bairrista, a data festiva, por exemplo). expresso lmpida e corredia, de verso gil e nervoso, lxico comum e sintaxe solta, no falta a imponderabilidade de sentidos que a memria de cada poeta e a memria colectiva fecundam com uma sabedoria que se faz com experincia humana, reflexo e intuio. O que persiste das suas obras no portanto a homenagem fcil ou o incidente banal, mas o que nelas pulsa, com uma criatividade muito inventiva, de construo do futuro poeticamente problematizado. Se assim no fosse, a redundncia que marca indelevelmente tais poemas, tanto a dos contedos j amiudadamente convocados como a da potica no menos reiteradamente compartilhada no patrimnio literrio comunal (referimo-nos sobretudo ao corpus dos poetas populares tradicionalistas, na terminologia de Joo David Pinto Correia acima especificada), em vez de caucionar a verdade duradoura e historicizvel dos textos, no permitiria mais do que a sua inumao sob uma pesada exausto de palavras. Da idiossincrasia destes criadores, idiossincrasia muito marcada pelos valores tradicionais, o que mais impera nas formas do contedo e nos dispositivos retricos e esttico-literrios dos poemas , s vezes em parceria multidimensional, o conceituoso, o trgico e o satrico. A coabitao desses vectores ocorre exemplarmente em O meu grito, de Manuel Alves, poema de acesa interveno contra a monarquia que cruza, desde a primeira dcima, o dolorido lamento pela decadncia do pas ( qual, como sobremodo sabido, o Ultimatum ingls confere uma maior visibilidade) com a denncia circunstanciada dos motivos que conduziram a Ptria a esse abatimento: Nobre e altivo Portugal,/ Foste outrora o mais valente,/ Hoje to pobre e doente,/ Imprio feito Hospital!/ Saquearam-te o metal,/ Altos senhores de cartola,/ Partiu a doirada mola/ chave do teu dinheiro,/ porta do estrangeiro/ Bates, pedindo esmola.// Tu foste crente e sadio/ Nessas pocas passadas,/ Hoje, em manhs de geadas,/ Trmulo de fome e frio.../ Esse governo vadio,/ Essa vil raa mesquinha,/ Vendeu-te raa vizinha/ Como intil para a vida!/ Tens a existncia perdida,/ Tu, j das naes rainha[36]. Contra a linguagem do poder poltico ergue-se, pois, o poder da stira, com uma linguagem que se subtrai s clausuras da seriedade hipcrita, uma linguagem que compromete a fruio da revolta que se afirma no texto com o desiderato de aco libertadora e correctiva sobre o mundo. Mais frente, no mesmo poema, com efeito, l-se / ouve-se, um pouco maneira de um esconjuro oral tradicional, que funciona pelo que se acredita ser, atravs dele, a cura transcendente: filhos de Portugal,/ Gritai todos a uma voz:/ Abaixo o governo atroz!/ Abaixo a hoste real!/ Limpemos o lodaal,/ O foco da epidemia,/ Que de dia para dia/ Nos vai cavando o abismo;/ Guerra crua ao despotismo!/ Guerra crua monarquia![37].

Preocupaes de justia e de igualdade num universo social de clivagens, eis, num breve enunciado, o que mais move stira Antnio Eusbio e Manuel Alves, que se instalam no interior da tradio (textual e social) para operarem uma subverso audvel capaz de actuar dentro das entidades e dos discursos modelados num surdo e intransigente esprito de casta (Quimporta que alguns Senhores/ Me neguem o pensamento?/ H de burros mais de um cento/ Com ttulos de doutores!/ Mas porque so possuidores/ De centenares de cruzados,/ Julgam que sobre os montados/ S medram bestas de carga!.../ Tm razo: a vida amarga/ a herana dos desgraados[38]) e sobre os vultos caricatos de espcies distintas, embora subordinados ao mesmo impulso de vaidade, mentira e poder (J vi vares com firmeza,/ Fidalgos sem fidalguia,/ Senhores sem senhoria/ E morgados sem riqueza./ J vi pobres sem pobreza,/ Mestre sem ter aprendiz,/ Taverneiro sem ter giz,/ Soldado sem ter capote,/ Mas padre andar de chicote,/ S o prior da Matriz[39]). Pela stira, que provoca admirao quer pela intuio do abismo profundo que a natureza humana quer pela sagacidade e agudeza dos contrastes tcnico-textuais que do a ver os contrastes sociais absolutos, o poeta relaciona grandeza e dor.

Concludo este parntesis (em que nos demormos mais do que a princpio prevramos), debrucemo-nos pois sobre Antnio Aleixo, para assentarmos, em primeiro lugar, que a materialidade do poema aleixiano j nasce com o registo da fala sublinhado, a frase ou verso coloquializados, as expresses e as palavras vocalizadas, como que se construindo numa cristalina e desafectada estetizao do dizer. Sob o signo da deriva e da descontinuidade do fragmento, cada stira de Aleixo transporta, em correlao inextricvel com a musicalidade e o ritmo dos vocbulos, com a versificao desenvolta, uma pregnncia de significados que vibram com um desassossegado arrebatamento, sem que transparea, numa primeira anlise, o que afinal , no o produto de uma espontaneidade individual e colectiva[40], mas a expresso mxima de um aticismo que se trabalha, se refina, se burila. Essa naturalidade, essa fala informal propcia a afirmaes de moral prtica que servem o resoluto e desenganado julgamento aleixiano da vida e do ser humano, traduz-se, antes de mais, na graa, na elegncia e no casticismo atinentes brevidade e (aparente) simplicidade de recursos mentais e expressivos. questo da potica associa-se um importante elemento antropolgico radicado na cultura do grupo: o poder da indignao (que , primeiro, uma necessidade de dimenso existencial), no o poder desregrado e transitrio da eloquncia ordinria, antes o da palavra dita, recitada, pertencente a um polissistema semitico que excede o poeta mas no qual ele desempenha um papel decisivo, de, praticamente, demiurgo.

As stiras aleixianas, pequenos tratados cuja realizao expressivo-formal, em especial a quadra e a dcima de metro heptassilbico, carreia superfcie a profundidade de uma grande sabedoria tica, a reescrita esteticamente afinada de uma experincia vivida em tom dolorido, so admirveis pelo amplo flego sinttico que apreende com exactido factos caractersticos da realidade quotidiana portuguesa, mas tambm, a partir dela, da prpria condio humana (Nem amor nem herosmo/ Tinha a nossa vida atroz,/ Se o nosso grande cinismo/ C dentro tivesse voz[41] ou Vem da serra um infeliz/ Vender smea por farinha;/ Passado tempo j diz: – Esta rua toda minha[42]). Os elementos de sentido mais substanciais, aqueles que nos comunicam o contgio da leitura inquieta sobre o significado do humano, vm directamente de um sistema histrico, social e de classe, de, numa palavra, um regime (o salazarismo) que insemina ou exacerba em Antnio Aleixo, como em outros nomes da nossa literatura, essa melancolia e esse fatalismo (alegadamente) muito portugueses que um Eduardo Loureno e um Jos Gil tm incessantemente procurado compreender dentro de um quadro hermenutico de histria mtica. Na coleco de Inditos, agora sem a carga de subentendidos caracterstica da obra conhecida, a temtica poltica[43] e o anticlericalismo[44] jacobino constituem-se mesmo como os principais tpicos de uma atitude desenganada perante a vida, que todavia no se quer destituda de vigilncia e protesto. Nestes textos, pulsam a cada instante as preocupaes de um Aleixo politicamente esclarecido, apto a perceber o nexo causal que faz depender do poltico o religioso (lembremos que, em 1940, Salazar estabelece um entendimento com a Igreja na base de uma Concordata), o econmico-material e o sexual, quer dizer, a mera instrumentalizao destes planos ao servio de uma ideologia ditatorial, assente nas noes de pobreza, frugalidade e pureza como estado de probidade.

No discurso das emoes aleixianas mediadas por uma racionalidade meticulosa, no que nesse discurso desgnio de formao humana integral, o satrico e o sentencioso actuam em complementaridade e convergem numa mesma sensao (que simultaneamente um dos grandes ideais do humano): a de que se est a recriar o mundo com palavras e a de que se vive atravs delas, com e para elas. esta, portanto, uma stira humanista, a que, diferentemente do que escreve alguma crtica menos preparada e esclarecida, no falta diversidade (e inovao) metafrica, j porque se labora com a multiplicidade de experincias, imagens e linguagens do mundo concreto, j porque o abstracto e o intuitivo so reificados num cdigo verbal que tambm atende ao imperativo da inteligibilidade imediata (mas no simplista, uma vez que a sinceridade verbal comea logo por articular-se com a ntima e intransmissvel autenticidade de cada ouvinte/leitor): Fala quanto te apetea,/ Mas desculpa que te diga/ Que te falta na cabea/ O que te sobra em barriga ou Tem quase um palmo de boca,/ No pode guardar segredos;/ Porm a testa que pouca:/ Tem pouco mais de dois dedos[45]. Por estes exemplos lapidares e incisivos se v como um texto que originalmente possa ter sido suscitado por uma qualquer circunstncia de histria biogrfica, e at, numa perspectiva de tica social, desarrazoada e cruel, adquire sem reservas o estatuto de pensamento potico universal. O acento de verdade imediata, e a capacidade de formulao de juzos morais (porm nunca, ou raras vezes, moralistas, antes revolucionrios, como reaco a um regime, esse sim, moralista em termos alis muito primrios), no se perde mesmo nos poemas investidos de um maior peso do contingente individualizado: O meu merceeiro um santo/ E h quem diga que ele mau!/ Digo-lhe s: – Dou mais tanto,/ J me arranja bacalhau[46]. Anulados os ndices referenciais que s em tempo til valeram como nominalidade circunstante, a historicidade do poema transcendentaliza-se e torna-se a-historicidade. A economia de meios formais no estranha a este estatuto de maioridade. O que a conteno verbal acarreta o sortilgio do dito que tudo diz, no por se esgotar na condio de enunciado com um determinado elenco de palavras e versos providos de um significado rgido, mas por a sua propriedade minimalista lhe garantir o estado de texto dos textos (os que se abrem a cada leitura/audio).

No por mero acaso, pois, e abordmos apenas uma parte, pouco mais do que desejadamente representativa, da produo potica satrica aleixiana, esta uma obra que se tem expandido no espao e no tempo, primeiro, durante a vida do poeta, com a reedio das diversas brochuras que constituem o corpus seleccionado para publicao, e, depois, desde 1969, com as sucessivas reedies dos diversos conjuntos entretanto arrolados sob o ttulo genrico de Este Livro que Vos Deixo..., a que, em 1984, se acrescenta um segundo volume, j aqui referido, de Inditos, editado pela primeira vez em 1978.



[1] Recordando a argumentao de Costa Pimpo num livro, Gente Grada, de 1952, David Mouro-Ferreira, num artigo de 1967, cita estas palavras de Eugnio de Castro, datadas do ano da morte de Joo de Deus: Da mesma forma que a natureza leva sculos e sculos para formar um brilhante, Joo de Deus levava dias e dias, meses e meses para formar um poema (A propsito de Joo de Deus, in Tpicos Recuperados, Lisboa, Caminho, 1992, p. 127). Seja como for, a crtica dos nossos dias continua a descrever e interpretar a esttica deste poeta atravs desses tpicos ambguos e imprecisos.

[2] O erotismo de Joo de Deus, in Sob os Signos de Agora, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995, p. 80.

[3] Cleonice Berardinelli, que, em termos liminarmente absolutos, distingue – erradamente, como j provmos noutro lugar – lirismo e stira, ajuza: No esperemos do lrico Joo de Deus um poeta participante, como foram, em parte, Antero de Quental ou Guerra Junqueiro, seus contemporneos em Coimbra; o seu tema o amor: amor mulher e amor a Deus. S o satrico – bem menor que o lrico – reflectir preocupaes polticas e sociais, traando caricaturas das instituies e dos que as mantm (Joo de Deus, in Estudos de Literatura Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985, pp. 123-124).

[4] Campo de Flores. Poesias Lricas Completas, coordenadas sob as vistas do autor por Tefilo Braga, tomo II, 5. ed. – ne varietur, Paris / Lisboa, Rio de Janeiro, Livrarias Aillaud e Bertrand, Livraria Francisco Alves, s.d., p. 9.

[5] Idem, p. 163.

[6] Idem, p. 151.

[7] Idem, p. 170.

[8] Idem, pp. 1-3.

Tefilo Braga observa que Joo de Deus constri a stira O dinheiro a partir da cantiga popular Coitado de quem no tem/ Na bolsa talim, talim, suprimida, entretanto, na edio das Flores do Campo, com o que prejudica a beleza da neuma epigramtica do estribilho (As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, vol. II, Porto, Livraria Internacional de Ernesto Chardron / Lugan & Genelioux, 1892, p. 31). Seja como for, o incansvel estudioso releva a perfeio e a graa da arquitectura estrfica, bem como o admirvel poder de evocao pitoresca dos modismos e coloquialismos. Desta notao de natureza tcnico-estilstica e de gentica textual parte Tefilo Braga para a demonstrao de que este poema entronca nas concluses da longa e persistente experincia histrico-literria em torno do jogo sobre a personificao do dinheiro: desde a poesia medieval latina dos poetas da corte, passando pelos goliardos, os estudantes por quem se estabelecia uma ligao mediata entre as classes ditas populares e os eruditos latinistas, e, j no final da Idade Mdia, pelos poemas monorrimticos, de reminiscncia trovadoresca, do Arcipreste de Hita, at, ainda depois das grandes descobertas da Amrica e da ndia, que aumentaram fantasticamente a riqueza da Europa (idem, p. 37), aos autores europeus e ibricos que vem no dinheiro o verdadeiro cavaleiro andante, como o pinta Quevedo na sua Letrilla graciosssima: Poderoso caballero/ Es Don dinero.// Madre, yo al oro me humillo,/ El es el mi amante y mi amado;/ Pues de puro enamorado/ De continuo anda amarillo:/ Que pues dobln sencillo,/ Hace todo cuanto quiero,/ Poderoso caballero/ Es don dinero.// Nace en las Indias honrado/ Donde el mundo le acompaa;/ Viene morir en Espaa,/ Y es en Gnova enterrado:/ Y pues quien le trae al lado/ es hermoso aunque sea fiero:/ Poderoso caballero/ Es don dinero.// [...] (idem, pp. 37-38. Sublinhados no original). Quevedo, por seu lado, que, ainda Tofilo Braga quem o memora, sanciona zelosamente naquele estribilho um ttulo – Dom Dinheiro – dos antigos fabliaux gauleses (idem, p. 40).

[9] Campo de Flores. Poesias Lricas Completas cit., p. 11.

[10] Idem, pp. 50-51.

[11] Idem, p. 72.

[12] com esse enunciado que, a encerrar o segundo canto da Divina Comdia, Dante, protagonista na personagem do Poeta, declara toda a sua dedicao ao poeta romano Virglio, que lhe aparece em esprito e promete acompanh-lo.

[13] Com os seus enunciados interrogativos, dubitativos, exclamativos e reticentes, No aniversrio da paz porventura o melhor poema desse tipo, um poema de espera pelo verdadeiro tempo de positividade humanista, de compromisso com o ethos democrtico e com a rejeio das tiranias (Ainda a vitria no desceu terra): Musa da guerra que alegrias cantas?/ Quem ergue e agita as triunfantes palmas,/ Se um espasmo de dor prende as gargantas/ E a treva ensombra os coraes e as almas?// Ainda a vitria no desceu terra.../ Ainda, ainda um falso nome.../ Mal se deliu um torvo espectro – a guerra/ Aumentou logo o velho espectro – a fome.// Amorteceu o pvido estampido/ Das vozes dos canhes, repercutentes,/ Mas enche o mundo inteiro outro rudo:/ – Milhes de bocas a ranger os dentes!// H nos tratados expresses de paz,/ Mas interroga e brada a multido:/ Que bem nos veio dela? O que nos traz,/ Se no nos deu contentamento e po?!... (Avena Rstica, Lisboa, Livraria Editora Guimares & C., s.d. [1927], pp. 21-22).

[14] Musa Crula, Coimbra, Livraria Portuguesa e Estrangeira, 1894, pp. 11-12.

[15] Idem, p. 7. Sublinhados no original.

[16] Como nuvem de lgrimas, pairando/ Sobre os tectos esguios da cidade,/ Vai-se morosamente desdobrando/ Um grande vu de sombra e de humidade.// A nvoa faz-me mal, pem-me doente,/ Torna-me os nervos moles, anormais,/ E estes sinos dobrando lentamente,/ Ainda me abatem e entristecem mais.// Sigo, rua fora, a ver se me distraio./ Entro para um caf. Jogo o bilhar./ Trazem-me um boque. detestvel. Saio./ E os sinos que no deixam de tocar!// Inquiro duns amigos que esto juntos/ (Amigos?! A amizade o que ser?)/ Por que dobram os sinos a defuntos./ Penaliza-me a nova que um me d.// Morreu a filha a um vendedor de panos/ Que empresta a juros de cinquenta ao ms./ E o pai h-de viver por largos anos.../ Oh justia de Deus, como tu s!// Notcias que se prendem com a morte/ Causam maior pavor num dia assim./ Para reagir, para fazer de forte,/ Ponho-me a gracejar de mim pra mim:// costume na noite de finados/ Iluminar a cova em que se reza./ Eu, desde j, dispenso tais cuidados./ Nunca pude dormir de vela acesa.// [...]// Um trunfo dominante do governo/ Passa de trem, numa andadura lesta./ Que triste coisa andar a p no inverno.../ Mal empregado pra aquela besta!// Com modos de palerma que me irritam/ Pra um rapaz e diz-me: – Ol! doutor!/ Coitado, um dos raros que acreditam/ Que eu tenha um poucochinho de valor...// Entro no quarto e vejo um sobrescrito./ Curvo-me a ler. Carta de minha me./ Louvado seja Deus, que este maldito/ Este agoirento dia – findou bem... (Versos, 5. ed., Lisboa, Livraria Editora Guimares & C., s.d., pp. 105-109).

[17] Avena Rstica, pp. 9-11.

[18] Pp. 45-46. Sublinhados no original.

[19] Augusto Gil, in Entre Fialho e Nemsio. Estudos de Literatura Portuguesa Contempornea, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987, p. 315.

[20] 2. ed., Paris / Lisboa, Rio de Janeiro, Livrarias Aillaud e Bertrand, Livraria Francisco Alves, 1914, p. 101. Sublinhados no original.

[21] Idem, pp. 157-158. Sublinhados no original.

[22] 3. ed., Lisboa, Livraria Editora Guimares & C., 1920, p. 12.

[23] Idem, p. 137.

[24] Idem, pp. 15-16. Sublinhados no original.

[25] Versos, p. 65.

[26] Luar de Janeiro, pp. 79-80 e 94-95.

[27] Agostinho de Campos (org. e introd.), Augusto Gil (Prosa e Verso), 2. ed., Paris – Lisboa, Livrarias Aillaud e Bertrand, col. Antologia Portuguesa, 1923, p. 218.

[28] Avena Rstica, 55.

[29] Natlia Correia (seleco, prefcio e notas), Antologia de Poesia Portuguesa Ertica e Satrica (Dos Cancioneiros Medievais Actualidade), 3. ed., Lisboa, Antgona e Frenesi, 1999, p. 33.

[30] Idem, p. 333.

[31] O Canto da Cigarra, p. 14.

[32] Lisboa, Livraria Portuglia, 1942, p. 28.

[33] Idem, p. 7.

[34] Idem, pp. 57-58.

[35] Cf., por exemplo, de entre os diversos estudos em que Joo David Pinto Correia prope um quadro taxionmico para os textos da genrica e comodamente chamada literatura popular, Os gneros da literatura oral tradicional: contributo para a sua classificao, in Revista Internacional de Lngua Portuguesa, n. 9, Lisboa, Associao das Universidades de Lngua Portuguesa, Julho de 1993, pp. 63-64.

[36] Fernando Cardoso, Poetas Populares, 1. vol., 6. ed., s.l., Edies Portugalmundo, 1989 (1. ed., 1976), p. 65. Para uma apreciao terica e metodologicamente informada dos quatro volumes desta antologia, preciosa mas a ler com muita cautela, devido principalmente aos mltiplos erros de focagem e interpretao que atravessam os prefcios e as introdues a cada um dos vinte poetas seleccionados, cf. o comentrio de Joo David Pinto Correia, Acerca de Poetas Populares, in Colquio/Letras, n. 52, Lisboa, Novembro de 1979, pp. 74-79. O equvoco, ou, melhor, o absurdo, dos juzos de Fernando Cardoso pode avaliar-se por uma passagem, entre muitas, como esta, a propsito de Antnio Maria Eusbio: Por tudo isto pertinente pensar onde teria chegado a inspirao e o estro do Calafate, se este no fosse filho de um pobre pescador ou se vivesse numa sociedade justa em que os homens nascem com iguais direitos de acesso cultura. Jlio de Castilho como que nos responde em parte: Perdeu-se ali um Tolentino. Mais grave, todavia, o apontamento conclusivo: De facto, se no fosse a falta de cultura, a sua frtil inspirao lev-lo-ia por certo a ser, seno [sic] um 2. Bocage, um 2. Nicolau Tolentino (Poetas Populares, 2. vol., 5. ed., s.l., Edies Portugalmundo, 1990 (1. ed., 1977), p. 52). Donde, como notvamos, a importncia da apreciao crtica do autor de Acerca de Poetas Populares, que citamos, porque se justifica, detidamente: Contudo, o que nos surpreende mais, e com que no podemos contemporizar, principalmente da parte de quem se mostra aberto descoberta dos valores populares, a quase permanente anotao de que aqueles poetas produziriam poemas muito melhores se tivessem acesso cultura institucionalizada. O que naturalmente aponta para o preconceito de que a cultura popular ser obrigatoriamente inferior cultura institucionalizada. Perguntar-se-: – quem nos garante que estes poetas, uma vez integrados na cultura institucionalizada ou oficial, continuariam a ser poetas com certa representatividade? No se encontrar a sua criatividade sujeita a mecanismos derivados do seu estatuto de pouco instrudos (que os capacitam para a produo e para a transmisso de tipo oral, que, como sabemos, tm o seu funcionamento prprio)? (p. 78).

[37] Fernando Cardoso, Poetas Populares, 1. vol., p. 67.

[38] Desafronta (de Manuel Alves), in idem, p. 80.

[39] Antnio Maria Eusbio, in Fernando Cardoso, Poetas Populares, 2. vol., pp. 52-53.

[40] O conceito de espontaneidade ocorre demasiadas vezes, em estudos sobre poesia oral ou de matriz oral, popular, como equivalente tcito de primitivismo e de facilidade, de improvisao meramente automtica e mecnica. Ora, ou se define com rigor o que se entende por tal (errtico) conceito, ou ento esses discursos tericos e crticos no podem, a um olhar mais atento e exigente, eximir-se de uma apreciao em que os termos neles usados para a apreciao dessa poesia, no que ela tem de melhor, de reinveno dos seus prprios esquemas (de conscincia fenomenolgica, por conseguinte), acabam por se lhes reportar com percuciente legitimidade: simplismo e superficialidade. necessrio que se perceba que o que caracteriza essa produo, quer dizer, uma impresso de instantaneidade, no existe ex nihilo: procede, antes, por assim dizer, de um complexo palimpsesto cujo centro gravitacional – o literrio – interage estreitamente com outros cdigos (como o social, o cultural, o poltico e o religioso), com a supremacia relativa da estrutura que dada a ouvir/ler em palavras.

[41] Este Livro que Vos Deixo..., vol. I, prefcio e notas preliminares de Fernando Laginha e Joaquim Magalhes, 18. ed., Lisboa, Editorial Notcias, 2003, p. 20.

[42] Idem, p. 21.

[43] Uma quadra como a seguinte, que, conforme nota Joaquim Magalhes no texto introdutrio dos Inditos (Este Livro que Vos Deixo... Inditos, vol. II, 13. ed., Lisboa, Editorial Notcias, 2003 (1. ed., Loul, 1978, sob o ttulo Inditos; 1. ed., 1984, como parte integrante do ttulo Este Livro que Vos Deixo...), p. 25), Aleixo enderea a um certo poltico, em Maio de 1945, no perde actualidade com a cessao do ambiente evocativo de origem: Esse sujeito capaz/ De nos fazer mil promessas,/ Mas faz-nos tudo s avessas/ Das promessas que nos faz (idem, p. 151). O nome e a poltica de Salazar so j nomeados numa composio de que irradia um aliciante sarcasmo irnico: Com uma gravata vermelha?!.../ Tem cuidado, no te esquea:/ – Que Salazar aconselha/ Muitas cores, menos essa (idem, p. 148). A mesma personagem histrica, de acordo com uma informao do mesmo Joaquim Magalhes, desencadeia este texto revoltado, que dilui a hipcrita promessa salazarista de eleies to livres como na livre Inglaterra na saturao de verdade do discurso de denncia: Prometem ao Z Povinho/ Liberdade, Lar e Po.../ Como se o mundo inteirinho/ No soubesse o que eles so! (idem, p. 151).

A Incio Jos Melrinho, tambm poeta popular tradicionalista, quarenta anos mais velho que Aleixo, pertence um poema que surpreende pela ousadia da acumulao de actos sociais perversos atribudos a Salazar. Registamo-lo na ntegra, como abonao de um conjunto indeterminado de composies que, como se de uma voz colectiva se tratasse (que, em certa medida, ), traa o perfil poltico e humano dessa figura incontornvel da histria portuguesa, a partir de um olhar (do povo, na acepo acima salientada) que uma retrospectiva em jeito de biografia, produzida, neste caso, na ressaca da morte do estadista: Mote. Salazar para o burgus/ foi um homem de valor/ deu ao povo portugus/ misria, fome e terror// I. Carrasco sem corao/ tantos lares arruinaste/ tantos homens que mataste/ tantos que tens na priso/ meteste na escravido/ todo o povo portugus/ todos os crimes que fez/ no esquecem humanidade/ tu s deste liberdade/ Salazar para o burgus// II. Tua vida terminou/ fascista sem corao/ deste tanta aflio/ a quem no te prejudicou/ todo o mundo te considerou/ como o maior ditador/ foste tu o fundador/ da ditadura fascista/ s para o grande capitalista/ foste um homem de valor// III. Falavas na lei de Deus/ lei que nunca cumpriste/ todos sabem que no seguiste/ nenhum mandamento dos seus/ seguiste a lei dos judeus/ matando quem tanto bem fez/ homens de bom corao/ quarenta anos de escravido/ deste ao povo portugus// IV. J basta de opresso/ velho povo portugus/ tanto mal a todos fez/ esse homem sem corao/ meteu-nos na escravido/ e olha-nos com rancor/ nunca ao pobre deu valor/ bastantes centenas prendeu/ tudo isto ele nos deu/ misria, fome e terror (Modesto Navarro, Poetas Populares Alentejanos, 2. ed., Lisboa, Vega, s.d. (1. ed., 1980), pp. 75-76).

[44] Por exemplo: Os padres so neste mundo/ O melhor que h pra comadres;/ Podem ser bons, mas no fundo,/ Pra mim so apenas padres (Este Livro que Vos Deixo... Inditos, vol. II, p. 72).

[45] Este Livro que Vos Deixo..., vol. I, p. 20.

[46] Idem, p. 22.