Nogueira, Carlos. Para uma potica da poesia oral infantil e juvenil. Culturas Populares. Revista Electrnica 4 (enero-junio 2007).

http://www.culturaspopulares.org/textos4/articulos/nogueira2.htm

 

ISSN: 1886-5623

 

 

Para uma potica da poesia oral infantil e juvenil

 

Carlos Nogueira

 

Ningum sabe andar na rua como as crianas. Para elas sempre uma novidade, uma constante festa transpor umbrais. Sair rua para elas muito mais do que sair rua. Vo com o vento. No vo a nenhum stio determinado, no se defendem dos olhares das outras pessoas e nem sequer, em dias escuros, a tempestade se reduz, como para a gente crescida, a um obstculo que se ope ao guarda-chuva. Abrem-se aragem. No projectam sobre as pedras, sobre as rvores, sobre as outras pessoas que passam, cuidados que no tm. Vo com a me loja, mas apesar disso vo muito mais longe. E nem sequer sabem que so a alegria de quem as v passar e desaparecer.

-Ruy Belo, A rua das crianas, in Homem de Palavra[s] (1970).

 

Resumo

Em entrevistas efectuadas em escolas e aldeias do concelho de Baio (distrito do Porto) entre 1993 e 2006, reunimos um corpus de rimas infantis que crianas e adolescentes adoptam, produzem e actualizam em ambiente escolar e extra-escolar. Atravs de um processo analtico de manifestao gradual da tessitura formal do discurso e dos segmentos ou resduos de sentido -estticos, culturais, antropolgicos, pragmticos, psicolingusticos, subversivos, etc.-, procuramos definir as grandes linhas da morfologia textual e a sua ligao a outros cdigos artsticos.

Palavras-chave: poesia oral infantil e juvenil, tradio oral, Portugal.

 

Abstract

Field work in schools and villages of Baio (district of Oporto) between 1993 and 2006, gathered the corpus presented in this paper, conformed of nursery / school rhymes adopted, produced and performed by children and adolescents in their own school and extra-school environment. By studying the development of the speechs formal structure and patterns of meaning –aesthetical, cultural, anthropological, pragmatical, psico-linguistic, subversive, etc.– we trace the main guidelines of the texts morphology as well as its connection to other artistic codes.    

Keywords: School Rhymes, Oral Tradition, Portugal.

 

 

 

D

urante muito tempo ignorada pela crtica literria e por outras disciplinas, no obstante a importncia quantitativa e qualitativa dos acervos reunidos, a poesia oral infantil e juvenil comea hoje a despertar o interesse que lhe devido. A obra mais completa at ao momento sobre a linguagem infantil rimada portuguesa - Um Continente Potico Esquecido: As Rimas Infantis de Maria Jos Costa[1] - organiza um corpus textual muito vasto e incerto, ao mesmo tempo que prope caminhos a explorar. A riqueza e a diversidade dos textos poticos infantis (entendidos aqui como aqueles que so produzidos, transmitidos e actualizados pelas crianas[2]) exigem abordagens rigorosas e atentas (de natureza antropolgica, psicossociolgica, psicanaltica, literria, lingustica, musical, etc.), com vista ao conhecimento das suas mltiplas zonas obscuras. Grande parte dos estudos existentes ocupa-se exclusivamente de composies que, cristalizadas em colectneas, na sua maioria j desapareceram da prtica quotidiana das crianas. Ora, mesmo se constitui excepo assinalvel o trabalho desenvolvido por Clara Sarmento na recolha, classificao e estudo de rimas modernas[3], a verdade que no dispomos ainda em Portugal de qualquer estudo de grande flego sobre a potica oral infantil e juvenil como os que existem j em Espanha[4]. Por isso, depois de reunirmos, a partir de entrevistas efectuadas em escolas, aldeias e cidades portuguesas entre 1993 e 2005, um corpus de poemas orais que crianas e adolescentes adoptam, produzem e actualizam em ambiente escolar e extra-escolar, procuramos aqui definir - e nisto consiste a segunda parte do nosso contributo para o conhecimento desta rea potico-cultural inesgotvel - as grandes linhas da morfologia textual e a sua ligao a outros cdigos artsticos, atravs de um processo analtico de manifestao gradual da tessitura formal do discurso e dos segmentos ou resduos de sentido - estticos, culturais, antropolgicos, pragmticos, psicolingusticos, subversivos, etc. Signo da vitalidade das linguagens verbo-musical e corporal, cada uma destas peas em si mesma o sinal de uma capacidade mental muito prpria do ser humano, que desde cedo reage urgncia inata de inter-relacionar simblica e metaforicamente o mximo possvel de elementos do meio em que vive.

Aceite e utilizada pelos estudiosos da nossa literatura oral, a designao rimas infantis (retahlas, em Espanha, comptines, formulettes ou jeux de mots, em Frana, filastroche, em Itlia, e nursery rhymes, school rhymes ou, at, mother goose rhymes, em Inglaterra, para enumerarmos apenas algumas designaes correntes na tradio europeia) no absolutamente operatria, porquanto h textos poticos no rimados que devem ser considerados. O que quer dizer que um conceito de rimas infantis demasiado rigoroso pode revelar-se redutor para o acervo a estudar. A denominao de Cardoso Martha e Augusto Pinto - folclore infantil[5] -, comportando embora as referidas expresses convencionais no rimadas que Maria Jos Costa excluiu da sua investigao por razes metodolgicas, tambm no satisfatria, se atribuirmos ao termo folclore a sua autntica acepo: a literatura folclrica totalmente popular mas nem toda a produo popular folclrica. Afasta-a do Folclore a contemporaneidade. Falta-lhe tempo[6]. Nesta designao no cabem, portanto, os numerosos textos produzidos modernamente pelas crianas, em geral muito distintos das rimas infantis tradicionais, muitas delas conhecidas hoje apenas pela faixa populacional mais velha. Para alm disso, demasiado abrangente para o nosso campo de trabalho, porque envolve prticas ldicas diversas, verbais e no-verbais (jogos como o piolho e a macaca). Inclui mas no especifica o domnio que nos interessa: a linguagem infantil rimada ou no rimada. Chamamos por isso a ateno para a expresso de Vera Vouga - arte verbal infantil[7] -, pela sua pertinente magnitude. Por outro lado, considerando a funo desempenhada nestes textos pelo ritmo (Aristteles afirmava que a linguagem da poesia uma linguagem de ritmo), muitas vezes o principal elemento estruturador, justifica-se plenamente a substituio de rimas por rtmicas, proposta por Arnaldo Saraiva[8]. Por tudo isto, e sem esquecer tambm a incongruncia do adjectivo no sintagma rimas infantis, tendo em conta a idade dos utilizadores-autores (at aos 14-15 anos, chegando mesmo aos 17-18, nas dedicatrias), se bem que a expresso rimas infantis continue a impor-se pela sua comodidade e utilidade, sobretudo para a nomeao de textos especficos, no pode competir com a nica designao que no equvoca: poesia oral infantil ou infanto-juvenil. O essencial desta textualidade aparece ali superfcie: a sua dimenso quer de fabricao ou aco, no que remontamos ao vocbulo grego poiesis, quer de objecto em si mesmo, o poiema; a modalidade material da sua existncia, a oralidade; e o nvel etrio, com tudo o que isso implica nas vrias reas de desenvolvimento, dos produtores-emissores. E, curiosamente, talvez por influncia da expresso nursery rhymes, usada desde meados do sculo XIX em Inglaterra e logo a seguir em inmeros pases, ningum at hoje (que saibamos) a defendeu ou usou com irrestrita convico.

A desvantagem da outra nomenclatura que se nos afigura exacta para a indicao do poemrio oral infantil e juvenil no seu conjunto – cancioneiro (compreendendo aqui, note-se, tanto a produo cancioneiril como a romanceiril) infantil ou infanto-juvenil, conforme o alcance etrio dos corpus – reside apenas na confuso que se pode estabelecer com a acepo de cancioneiro enquanto colectnea de poemas de autor, lricos ou narrativos, criados por jovens, crianas e mesmo adultos (desde que, nesta ltima instncia autoral, os temas, os motivos e os estilemas da actividade criativa radiquem no mundo da infncia ou da juventude, como sucede no projecto Cancioneiro Infanto-Juvenil para a Lngua Portuguesa, da responsabilidade do Instituto Piaget[9]); confuso, ainda, com o conjunto de composies, geralmente musicadas, divulgadas em formato de literatura infantil com um ttulo – cancioneiro infantil[10] – cuja ambiguidade comea no cruzamento imprprio entre os planos da emisso e da recepo, e que, portanto, em bom rigor, no pode substituir a nica denominao correcta: a de cancioneiro para a infncia. A adequao do termo cancioneiro ao repertrio literrio oral infantil e juvenil, num artigo, numa conferncia, numa aula, faz-se sem dificuldade com a completao do seu sentido atravs de constituintes adjectivais como de transmisso oral, oral infanto-juvenil ou, se o acervo for inequivocamente folclrico, tradicional ou de tradio oral. A operacionalidade desta terminologia vem, acima de tudo, da sua possibilidade intrnseca de sugerir o que neste lugar de sonho real tecnicamente vital: a proferio do texto esttico-literrio concilia-se, em maior ou menor grau, com a formao de sons musicais que se distribuem convictamente pelos sistemas mtrico e prosdico (enquanto, de acordo com os sentidos grego e latino do conceito, tudo o que se relaciona com a prolao do enunciado e a sua edificao como objectualidade sonora e musical).

Analisamos nesta comunicao um corpus de poemas orais infantis e juvenis reunido a partir da recolha de campo que h cerca de doze anos desenvolvemos em Portugal, considerando o texto lingustico e outros nveis de significao que contribuem para a efectivao do acto comunicativo. O enquadramento contextual tem adquirido uma proeminncia cada vez maior na abordagem das manifestaes folclricas, porque texto e contexto formam uma unidade indivisvel e irrepetvel. Os textos que nos propomos estudar no so entidades de significado autnomo; inscrevem-se num universo mais totalizador, formado por elementos comunicativos paralingusticos, cinsicos, proxmicos, sentimentos e atitudes culturais. O literrio no apenas uma categoria com aplicao potica ou esttica e ldica; a sua vigncia provm de uma codificao congnita que lhe permite instituir-se como veculo de interpretao e organizao do meio circundante (social ou natural), particularmente naquilo que nele desconhecido, inquietante ou contencioso. Contrariamente ao que sucede na literatura canonizada, fruda na intimidade da apropriao e recepo individuais, estes textos orais s se realizam inscritos em prticas quotidianas que consubstanciam momentos de lazer. A necessidade de expresso e as especificidades semnticas e tcnico-estilsticas no desencadeiam por si s a existncia desta literatura, integrada num extracontexto social e cultural concreto. O texto verbal registado por escrito a recordao, o reflexo grfico dum organismo vivo transmitido por via oral, efmero, annimo, colectivo e, por consequncia, sujeito a alteraes constantes.

O jogo o momento privilegiado de concretizao do cancioneiro infantil, instncia que reflecte e subverte o real, manifestando, atravs do processo de execuo, a sua relao com nveis contextuais de natureza social, geogrfica, situacional, etria, etc., responsveis por mltiplas percepes da realidade. Decisiva para a realizao do jogo, a voz potico-musical dimana de um corpo cujos movimentos a continuam, prolongam e reforam. O som e a consistncia da voz uniformizam a comunicao e o gesto consuma o seu significado, imprimindo-lhe signos de diverso tipo. A gestualidade evidencia o poder do corpo, concomitantemente mediador natural da comunicao oral e sistema significante. Como qualquer poema oral, a rima infantil no afectada pela saturao, parce que, dans la chaleur de la prsence, jamais la parole, mme chante, ne peu sidentifier la plnitude de la voix[11]. Enquanto etnotexto cantado, uma forma de expresso potica oral enriquecida pela msica vocal, que sustenta muita da energia evocativa, encantatria e emocional desta manifestao cultural esttico-pragmtica.

Como macrotexto, o cancioneiro infanto-juvenil de transmisso oral um imenso palimpsesto produtor de identidade e alteridade, com cada texto, na sua autonomia, a integrar-se em veios caractersticos dos seres em fases que so a criana e o jovem, seres em movimento, em constante transformao, seres inalienveis e simultaneamente divididos entre o dizvel e o indizvel, entre o que se sabe dizer e o que misterioso, inapreensvel.

A execuo da rima exige que o discurso seja apoiado pela memria, tantas vezes precria e ilusria, envolvendo tenses contnuas produzidas pela relao entre o individual e o colectivo; da as variaes, os segmentos improvisados, a refundio do j dito. O eco provocado pelas mltiplas modulaes dos poemas equilibra e torna perceptvel este tipo de comunicao verbal-gestual-sonora. As recepes defectivas e as falhas de memria durante a performance no se convertem em momentos redutores. Em vez disso, fecundam muitas vezes o processo de criao potica, ao viabilizarem a incrustao de elementos novos em substituio dos vazios deixados. Cada nova performance, falada ou cantada, dependendo das componentes extratextuais, pode potencialmente criar um novo mundo potico, a partir da reformulao das estruturas semntico-pragmticas constantemente questionadas.

Os versos - formulsticos - beneficiam de uma contnua contextualizao, ao antecederem prticas culturais cuja funcionalidade os mantm vlidos. As frmulas de seleco ou os jogos de dedos (em que interagem criana e adulto) so por isso mesmo um dos sectores das rimas menos afectados pela eroso provocada pelos novos hbitos. Adquirem assim pleno significado poemas-miscelnea como os seguintes, formados por fragmentos dotados de autonomia semntica, mas capazes de nutrir uma composio-mosaico nova:

Pico, pico, saranico[12],

Pico, pico, saranico,

Quem te deu tamanho bico?

Foi a filha da rainha

Que est presa na cozinha.

Salta a pulga na balana,

D um berro, vai a Frana;

Os cavalos a correr,

As meninas a aprender,

Qual ser a mais bonita

Que se h-de esconder?

                      *

Pico, pico, sar(r)abico,

Quem te deu tamanho bico?

Foi a velha chocalheira,

Que come ovos com manteiga.

Os cavalos a correr,

As meninas a aprender,

Qual ser a mais bonita,

Que se vai esconder,

Debaixo da cama da D. Ins,

L chegar a tua vez.

                *

Sola, sapato, rei, rainha,

Fui ao mar pescar sardinha,

Para a filha do juiz

Que est presa pelo nariz.

Salta a pulga na balana,

E vai ter at Frana[13].

Os cavalos a correr,

As meninas a aprender,

Qual ser a mais bonita

Que se vai esconder?

              [Jogo de dedos, utilizando-se, no caso, bonito, ou jogo de roda]

 

 

No conhece limites o rendimento funcional de cada um destes segmentos, os quais, no mesmo poema, podem interagir com segmentos igualmente conhecidos no sistema ilimitado que o cancioneiro infantil e juvenil. Todos constituem um centro, um paradigma por relao a outros paradigmas, nenhum uma periferia, uma ocorrncia anmala. O que os aproxima e sintoniza, se se encontram num mesmo texto, a sua irredutvel diferena semntica. Se um paradigma se une a outro numa unidade-ocorrncia similar e reconhecvel que se autonomiza, isso significa que constitui com ele um paradigma mais extenso.

Nalgumas frmulas, a voz transpe os limites da linguagem articulada, organizando-se em cadeias de significantes que valem pelo sentido do nonsense, pela musicalidade, por uma sugesto ou ressonncia de linguagem crptica e mgica. Estruturas de pura vocalizao como Pim-po-ne-ta,/ pta-pta-ptucha-plim, que conformam um poema acabado, convivem com segmentos aliterantes e assonantes, despoletados, antes de mais, pelo imperativo de rima final (ta ita ,/ Quem est livre, livre est;/ Eu fugi por ali,/ Tu fugiste por acol; Ita ,/ Ita, ita, ita ,/ Quem est livre,/ Livre est), de construo do verso heptassilbico (ou isossilbico: -ti-ti, gosto mais de ti[14],/ O Joo esteve aqui,/ Escolheu-te a ti), de preenchimento de espaos vazios (Ala-c-i-i,/ Vinte e quatro-tro,/ Avenida-da, sassinato-to,/ Pobre velha-lha-lha,/ Pobre ponta-ta/ Do sapato-to), ou por influncia de todos (ou quase todos) estes factores (Ana-ina-no,/ Fica tu porque eu no). Constituintes vitais do material potico, a sonoridade dos vocbulos e o sistema rtmico-mtrico produzem uma linguagem singular, ldica, dispensando o sentido referencial e lgico. Na primeira infncia, pelo contrrio, o nonsense, caracterstica fundadora da linguagem infantil, em larga medida fonologicamente motivado.

As cantigas que reunimos sob o ttulo lengalengas com palmas formam um grupo numeroso, em que texto lingustico, msica vocal, gestos, movimentos corporais e dana geram um sistema artstico coeso:

 

Sabonete de Sinasol

Tem o direito de se mostrar,

Charara, charara.

Vi um filme de terror,

Uuuu (encolhe-se os ombros e agita-se  os braos).

Vi um filme de cabis,

Chicabis, chicabis (simula-se o cavalgar com os ps e com as mos),

Vi um filme de amor,

Chuac, chuac (imita-se o som dos beijos).

Estados Unidos,

Palhaos bem vestidos,

P frente, pa trs.

Estados Unidos,

Palhaos bem vestidos,

P frente, pa trs,

Um, dois, trs.

 

O texto cantado como confirmao e apoio rtmico de um jogo realizado entre duas raparigas. Enquanto cantam o poema, colocadas uma frente da outra, executam movimentos de palmas direitas e cruzadas; ao mesmo tempo, reforam o significado de certos vocbulos ou sintagmas atravs de uma mmica variada e expressiva. O estudo da retrica dos gestos que acompanham este tipo de textos permitir-nos-ia compreender melhor o quadro de valores socioculturais das crianas envolvidas: no por acaso que a simulao do beijo uma das situaes mais observveis.

Fixemo-nos agora num exemplo limite: no texto-jogo seguinte, com um cdigo gestual semelhante ao do anterior, a sonoridade pura, fontica, assume-se como construtura semitica que ultrapassa o cdigo estritamente lingustico, participando na constituio de uma manifestao cultural ldico-esttica. A unidade da dico define-se novamente pela diviso silbica, que regula por sua vez o batimento das mos. O plano rtmico-musical apoia-se na multiplicao de aliteraes, ecos sonoros e correspondncias de timbres, combinando reiterao e variantes que fazem avanar o jogo com uma fluidez especial. A sequncia de sons, que no se inscreve num contexto puramente verbal, integra um processo artstico que encontra na atitude corporal o seu princpio organizador fundamental:


 

Abom-bi, coroni, coron[15],

Ser bom-bi, coroni,

Corona, aca-de-mi-sol,

Ja-mi, aca-de-mi, buf-buf[16].

 

Corpo em exaltao, centrado no seu prprio prazer, corpo de prazer em campo aberto, corpo-movimento, corpo-voz, corpo para si e corpo para o outro, a lembrar os poemas fonticos dos dadastas, como neste exerccio de pura linguagem (sonoridade) de prazer: jolifanto hambla falli hambla/ grossiga mpfa habla horem/ egiga goramen/ higo bloiko russula huju/ hollaka hollala/ anlogo bung/ blango bung/ bosso fataka/ u uu u/ scahmpa wulla wussa lobo/ hej tatta grem/ eschige zunbada/ wulubu ssubudu uluw ssubudu/ tumba ba umf/ kusagauma/ ba umf[17].

Diz Eugnio de Andrade, no breve mas substancial texto maneira de explicao, se tal for necessrio, com que encerra o seu livro de poemas Aquela Nuvem e Outras (1986), consagrado infncia (mesmo se , como todas as boas obras destinadas a uma recepo por parte da infncia e da juventude, de leitura cativante e proveitosa para todas as idades): a simples matria sonora – rimas, aliteraes, reiteraes, estribilhos, consonncias – fonte de seduo e razo de encantamento desde que o homem se demorou, pela primeira vez, a escutar o vento entre os ramos (servimo-nos da 11. ed., Vila Nova de Famalico, Edies Quasi, 2005, sem numerao de pginas; com cores e ilustraes que de imediato arrebatam os sentidos do leitor ou do simples utente do livro, materializando em corpos icnico-empricos a construo potica que, com a imagem, trans-figura a legibilidade do mundo conhecido e desconhecido). De certo modo, cumpre-se a cada leitura (silenciosa ou em voz alta) o desejo formulado pelo poeta exactamente no fim do posfcio: Quis misturar a minha voz s vozes annimas da infncia – oxal ela venha a tornar-se annima tambm. E, para isso, nem necessrio que se exija destes poemas a disseminao e a persistncia na memria colectiva oral, a contaminao com outros textos e o desdobramento em variantes, a sua adequao, numa palavra, s leis da tradicionalidade: no s porque, ainda nas palavras do poeta, a uma retrica de fogo de artifcio se ope aqui uma potica da luz, articulando a nudez e a transparncia com a simplicidade de quem fala para que outros o escutem – da o uso frequente das sete slabas contadas que o ritmo natural e portugus da nossa fala, se no for tambm o dos nossos passos, mas igualmente porque em cada um destes textos se cumpre a utopia de uma voz literria primordial; uma voz de vozes, forte e total, que, no caso, pelo recurso gil arte potica prpria das obras literrias orais e pela convocao de uma memria literria (oral e escrita) que modela um tecido intertextual muito rico e diverso, faz de cada um destes textos um monumento j tradicional (com o que, diramos, quase deixa de ser funcional o conceito de popularizante ou de popularismo esttico, tal a verdade destes textos, em si mesmos alheios s categorias com que muitas vezes partimos para a anlise de certas obras: oral/escrito, popular/culto, tradicional/no tradicional, etc.):

 

No quero, no

 

No quero, no quero, no,

ser soldado nem capito.

 

Quero um cavalo que s meu,

seja baio ou alazo,

sentir o vento na cara,

sentir a rdea na mo.

 

No quero, no quero, no,

ser soldado nem capito.

 

No quero muito do mundo:

quero saber-lhe a razo,

sentir-me dono de mim,

ao resto dizer que no.

 

No quero, no quero, no,

ser soldado nem capito.

 

Os versos usados quando se procede seleco dos participantes no jogo - as frmulas de seleco[18] - compem um grupo muito numeroso. Repetidos tantas vezes quantas os intervenientes, estes textos caracterizam-se por um ritmo rpido, apoiado pelo dedo indicador da criana que efectua a triagem. O jogo comea logo que se determine o ltimo elemento. Estas frmulas, que precedem jogos como o mata, as escondidinhas e as caadinhas, configurando elas prprias jogos verbais, apresentam uma diversidade temtica aprecivel. Nos versos criados pelas crianas observa-se uma coexistncia pacfica entre formantes e frmulas tradicionais, como Aniqui, bob e Pico, pico, sarrabico[19], e aspectos oriundos da realidade circundante, como Coca cola bebo eu ou Tens lpis e lapiseira?. O conjunto destas composies constitui uma espcie de mosaico que incorpora recursos muito heterogneos: sociais (rei, rainha, juiz, cozinheira, velha, aviozinho militar), naturais (raposa, galinha, gato, laranja, cavalos), religiosos (Nosso Senhor passou por aqui) ou pessoais (Que eu fumei um cigarro;/ Minha me me bateu).

relativamente acentuada a decadncia destes jogos - mas no o apagamento irreversvel[20] (nenhuma sociedade tecnolgica implicar o desaparecimento das rimas infantis) - sobretudo nas grandes cidades, substitudos por prticas recentes desencadeadas pelas novas relaes de convivialidade dos jovens, como os desportos e os jogos de computador. Como quer que seja, continuam a desenvolver-se eficazmente, por fora da sua funcionalidade, que favorece uma adaptao dinmica s condies de vida dos nossos dias. E nem se pode dizer, monoliticamente, que o poema oral infantil e juvenil existe hoje apenas no espao dos recreios dos infantrios e das escolas do primeiro e do segundo ciclos do ensino bsico. Se estivermos minimamente atentos, veremos como h crianas e jovens em interaco atravs destes jogos de gestos, de movimentos, de sons e de palavras onde quer que exista uma situao de alguma rigidez formal (se, por exemplo, uma igreja enche, a ponto de muitos fiis serem obrigados a permanecer no exterior, no raro encontrarmos a sublimao do real, ou a instituio de um outro real sublimado, que sempre a actualizao-criao de um texto potico oral por parte dos seus intrpretes-autores). Cada um desses poema orais uma poiesis, uma fabricao-recriao do potico (e, por conseguinte, de sabedoria e de humanidade) que, em parte, acontece nossa frente como ritual, inveno, arte, competio, persuaso. Esta rima infantil, por exemplo, a que poderamos juntar outras com destacados heris como o Popeye ou aquelas que retomam canes de genricos de telenovelas, descende directamente da srie televisiva em desenhos animados, evidenciando que televiso e jogos-rimas[21] no so para as crianas domnios antagnicos, mas sim estreitamente dialogantes:

 

Willy F foi dar a volta,

A volta mundo,

Oitenta dias,

Oitenta noites.

Conheceu princesa Arrs,

Visitou Norte, Sul, Este, Oeste

(d-se uma volta e repete-se a lengalenga).

 

A comunidade infantil portadora de um patrimnio comum que a defende das agresses do mundo adulto autoritrio e coercitivo. Na rua, no ptio ou no recreio, esta langue extra-individual e de existncia potencial, actualizada em cada parole, fornece criana a possibilidade de aceder a outro mundo no qual pode existir distintamente: mundo privilegiado, constitudo por uma representao (mais ou menos pardica ou sria) da realidade, espelhada em jogos que integram o ldico, o conhecimento, a fruio esttica, a sua sensibilidade lrica, narrativa e/ou dramtica. Da narrativa de Jlio Verne A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, das aventuras do ntegro, corts e enrgico Phileas Fogg, o poema transcrito a mais expressiva sntese que conhecemos, a essencializao mxima de um texto flmico ( essa a matriz, no o original divulgado primeiramente em livro, desde 1873) convertido em texto-jogo potico-musical e coreogrfico. A mentira (a fico), enquanto corpo de perguntas e respostas num corpo humano orgnico e questionador, a verdade de uma carnao que vem do poema e ao poema volta como o seu lugar soberano. Nesta viagem, o sujeito liberta-se da organizao artificial da vida comum, descobre e sublima a sua natureza interior, que uma construo-derivao incontrolvel de sentidos, como incontrolvel a fragmentao do mundo que estes textos repercutem, na sua arrogante (in)completude.

Ao passo que os temas e os motivos destes textos se renovam constantemente, os procedimentos retrico-estruturais basilares persistem. Segundo Snchez Romeralo[22], assim como o romance se torna tradicional atravs da transmisso oral, na lrica popular um poema pode surgir j tradicional, se integrar os processos estilsticos autorizados pela tradio. A rigidez da linguagem tradicional como facto construtor, por um lado, e a flexibilidade de uma estrutura aberta que responde operativamente aos estmulos da dicotomia herana / inovao, por outro, proporcionam a recriao interminvel destes textos em variantes[23]. A linguagem potica tradicional sofre transformaes de vulto, ostentando imagens, motivos e lxico consentneos com os novos tempos. Permanecem, contudo, o dilogo, o solilquio, a onomatopeia, a enumerao, o encadeamento, a reiterao, a rima e o ritmo geralmente binrio.

semelhana do que sucede com as suas congneres mais antigas, as rimas modernas constituem um domnio particularmente propenso a uma considervel diversidade ao nvel dos mecanismos versificatrios; diversidade na estrutura da estrofe e nos esquemas rimticos, mtricos (no obstante o predomnio do verso isossilbico ou apenas com ligeiras alteraes) e rtmicos[24]. Na origem desta multiplicidade encontra-se, antes de tudo, o desenvolvimento da organizao sintagmtica e paradigmtica da criana, a qual, progressivamente, descobre que as unidades lingusticas possibilitam um elevado nmero de combinaes, embora sujeitas a determinadas normas. evidente, porm, que o processo de aquisio da linguagem no explica todas as diferenas. As funes dos textos, os contextos de utilizao e o nvel etrio dos intrpretes-autores so tambm responsveis pela grande variedade de caractersticas formais, como acontece, por exemplo, nas rimas de jogos[25]. Alm disso, a variedade formal percorre no raro a rima infantil enquanto entidade textual autnoma. Ligada ao jogo de palmas, a verso da rima infantil transcrita a seguir, pronunciada por crianas do ltimo ano do 1 ciclo do Ensino Bsico, caracteriza-se pela irregularidade mtrica, rimtica e rtmica, o que no acarreta ausncia de repetio como princpio estruturador do texto. redundncia do signo, concretizada em duas anforas, associa-se a redundncia do significante, apesar da referida diversidade: embora predominem os versos brancos, esto presentes as rimas emparelhada e cruzada, bem como a rima retrgrada (Willy F foi dar a volta,/ A volta mundo); o bater das mos marca a contagem das slabas, que deste modo ganham fora enquanto grupos rtmico-meldicos; a acentuao binria (ou ternria, nos versos mais longos) relaciona-se com a sincronizao sensrio-motora dos movimentos, resultando num ritmo que se faz com palavras e com traos translingusticos que simultaneamente elas suportam[26]. Os versos estruturam-se numa sintaxe de encadeamento assindtico, em curvas ascendentes e descendentes, desenvolvendo, a partir do primeiro segmento textual narrativo (relativo s aventuras do heri), sucessivos andamentos sem-sentido, motivados pelo surgimento da rima fcil, oportuna (Ҏ / p; quiqui / chichi):

 

Willy F foi dar a volta,

A volta mundo,

Oitenta dias,

Oitenta noites.

Conheceu princesa Arrs,

Visitou Norte, Sul, Este, Oeste.

A Holanda, Holanda ,

Meu amor partiu um p,

l quiqui,

l quiqui.

Quem ficar com as pernas abertas

Vai fazer chichi.

 

Chamamos a ateno, por fim, para um grupo das rimas infantis e juvenis que tem sido quase completamente ignorado nas coleces publicadas at hoje: as dedicatrias, atravs das quais constatamos que o desaparecimento do cancioneiro popular tradicional no to acentuado nem to acelerado quanto parece, porque as comunidades vo encontrando mecanismos que garantem a sua permanncia na memria colectiva. Conviria, pois, desenvolver-se a recolha sistemtica destes textos e submet-los a estudos de diverso tipo. As nicas obras que contm dedicatrias so o segundo volume do nosso Cancioneiro Popular de Baio[27] e Olhares Sobre a Literatura Infantil - Aquilino, Agustina, Conto Popular, Adivinhas e Outras Rimas, de Francisco Topa[28], com 453 e 427 textos, respectivamente. Neste ltimo livro, encontramos tambm um estudo sobre estes poemas, a que o autor aplica a designao de autgrafos rimados[29]. No nosso estudo Literatura Oral em Verso. A Poesia em Baio e em Rimas Infantis: A Poesia do Recreio de Clara Sarmento, as dedicatrias so igualmente objecto de categorizao e anlise.

As dedicatrias, termo usado s vezes pelos prprios utilizadores, concorrendo com a designao (sinedquica) verso(s)[30], so textos que circulam entre crianas e adolescentes (Ensino Bsico, sobretudo nos nveis mais avanados, e Ensino Secundrio), sendo o contexto escolar o seu espao quase exclusivo de criao e de distribuio. A sua sobrevivncia firma-se no registo escrito, ora em cartas trocadas entre amigos e namorados, principalmente no dia 14 de Fevereiro, ora em cadernos autobiogrficos, que circulam intensivamente em finais de perodo ou de ano lectivo, na tentativa de conservar os elos de ligao criados durante as aulas, ora nas capas dos cadernos das diversas disciplinas. Construdas quase sempre em verso e num vocabulrio claro, encerram uma mensagem objectiva, com um propsito bem definido. A quadra a forma estrfica preferida, constituda geralmente por heptasslabos, com o esquema rimtico ABCB, no que se nota a preocupao com a fidelidade ao paradigma tradicional. Palavras-chave como amizade, saudade, estudante, corao e amor encontram-se amiudadamente em posio estratgica, em rima final:

Se um dia desfolhares

A ptala da saudade

L encontrars restos

Da nossa amizade.

O meu pobre corao

Precisa do teu amor.

Quando isso acontecer,

Acaba-se a minha dor.

 

Com a dedicatria, situamo-nos numa fase especialmente intensa do devir do sujeito: o da descoberta fulgurante da amizade, do amor e da sexualidade completada no outro e para o outro. Um texto como este constitui uma inscrio incondicional do outro no interior do mesmo-outro: No dia dos namorados/ No embalo da minha rede/ Quero teus beijos molhados/ Para matar a minha sede.

As raparigas cultivam esta prtica com particular cuidado e assiduidade, enquanto os rapazes, que tambm entram neste processo, raramente possuem cadernos com as coleces de dedicatrias. Para se escrever a dedicatria, comum recorrer-se directamente ao suporte escrito, ao caderno prprio ou de outrem, ou a uma folha onde esto registadas algumas dedicatrias que sero distribudas por aqueles que as requisitarem. a nica modalidade das rimas com existncia predominantemente escrita, silenciosa, o que no interrompe a formao de variantes, desde logo porque a memorizao importante para o seu emprego em qualquer momento. Usa-se frequentemente, de facto, o reportrio gravado na memria, exerccio de que derivam numerosas variantes involuntrias, advenientes da improvisao motivada pelo esquecimento do modelo e pela urgncia do momento. No podemos tambm ignorar a formao de variantes voluntrias a partir de um texto padro, aquelas que surgem por vontade deliberada do intrprete-poeta, como resposta aos seus gostos e necessidades pessoais:

Dizes que no tenho cama,

Que durmo na terra fria;

Tenho cama, tenho roupa,

Quero a tua companhia[31].

Dizes que no tenho cama,

Que durmo na terra fria:

Tenho cama de felores,

S me falta a companhia[32].

 

Quadra popular e dedicatria coincidem com frequncia, o que significa que, nesses casos, a fonte o folclore literrio da comunidade. Os poemas orais tradicionais que fecundam as dedicatrias, utilizados integral ou parcialmente, adquirem continuidade e notoriedade atravs delas, que constituem a sua descendncia, deslocada para a folha de papel, numa nova existncia sem voz, instituda na presena grfica, mas nem por isso inferior em vocao emocional e comunicacional. Reconhece-se aqui o multissecular enraizamento de alguns dos traos fisionmicos de uma tradio, a que no alheia a contnua capacidade (re)criadora popular. Uma composio como a seguinte, com foros inquestionveis de tradicionalidade, tambm uma dedicatria muito conhecida. A funo a mesma nos dois domnios, apenas com a variao do registo (na dedicatria, a vertente escrita indispensvel, embora a circulao tambm possa processar-se oralmente) e do contexto situacional (o ambiente escolar, especialmente nalguns momentos especficos, como dissemos):

Com A se escreve amor,

Com R recordao,

Com C teu lindo nome,

Que trago no corao.

 

Um poema oral cancioneiril pode, portanto, tornar-se dedicatria pelo uso a que votado. No por isso de estranhar que no primeiro volume do nosso Cancioneiro Popular de Baio[33] figuram alguns poemas que encontrmos tambm com a funo de dedicatria, como esta quadra:

 

A linda palavra de amor

Dos lbios sempre a sair;

Todos a sabem dizer,

Mas poucos a sabem sentir.

 

O universo da nossa recolha de dedicatrias tem compreendido os diversos ciclos de ensino, com resultados muito significativos no 3 ciclo do Ensino Bsico e no Secundrio. Rapidamente, como seria de esperar, nos apercebemos de que inmeros textos figuram em diversos cadernos da mesma turma e mesmo de turmas diferentes, o que mostra a sua circulao segura, pelo menos dentro de cada territrio bem localizado. As permutas entre escolas vo sendo feitas com a movimentao dos prprios alunos dentro da rede escolar (transferncias de escola devido a mudanas de ciclo, de curso, entre outras razes mais circunstanciais). A nossa experincia de recolha de campo em vrios concelhos de Portugal Continental mostrou-nos que este processo particularmente visvel nos meios mais rurais, devido, como bvio, maior fora do patrimnio literrio tradicional, tanto na clula familiar como nas diversas prticas de convvio social. No deixa contudo de ser curioso que, mesmo nos ambientes urbanos de Lisboa e do Porto e respectivas periferias, relativamente fcil encontrar escolas onde a circulao destes textos se processa com intensidade. Parece-nos que o sucesso da dedicatria prende-se, antes de mais, com as caractersticas do cancioneiro popular: a conciso, a clareza discursiva, o ritmo, a mtrica, a rima, a primazia dos motivos lricos e a consequente facilidade de memorizao dos seus poemas. Se estes textos sobrevivem com a funo de dedicatria, muito adaptados, com pequenas variaes ou mesmo reproduzindo totalmente a quadra tradicional, porque correspondem a uma representao simblica de sentimentos e de situaes que fazem parte do tecido sociocultural e idiossincrsico dos seus utilizadores.

            O tema predominante das dedicatrias o amor, sector que, como nas quadras populares tradicionais, divisvel em diversas sub-rubricas, desde a declarao amorosa (Tudo o que tenho na vida/ Cabe na minha mo/ O teu retrato cortado/ Em forma de corao), passando pelo lamento comovente (O meu amor ama outra/ E ela no quer saber/ Quem me dera ser essa outra/ Que tanto me faz sofrer), at ao desdm mais incontido (Je taime em francs/ I love you em ingls/ Para te dizer a verdade/ Detesto-te em portugus[34]). A amizade (Hoje amiga verdadeira/ Amanh talvez distante/ Mas nunca te esqueas/ Dos tempos de estudante), tema que no abundante na poesia oral tradicional, pelo menos enunciado explicitamente, e o jocoso (L vem o meu amor/ A chorar cheio de medo/ S porque viu um rato/ No meio do arvoredo) abarcam tambm um nmero muito razovel de composies, consequncia do tipo de relao existente entre destinadores e destinatrios das mensagens versificadas. A componente lectiva est subversivamente representada nalguns textos: Eu vou para as aulas/ Sei que vou fazer asneiras/ Em vez de estar atenta/ Escrevo amo-te nas carteiras.

Apesar de, genericamente, as dedicatrias evidenciarem uma estreita proximidade em relao ao cnone popular tradicional, apresentam nalguns casos uma imagtica e um tipo de discurso distintos do padro. No difcil detectar curiosas intromisses tropolgicas e vocabulares oriundas da cultura institucionalizada, com a qual os jovens estudantes contactam quotidianamente:

 

Fui ao exame de Qumica,

Recebi um desgosto.

No sabia se o amor

Era simples ou composto.

 

            Na produo da dedicatria, as frmulas ocupam um lugar de destaque pela sua elevada funcionalidade formal e semntica, distribuindo-se por dois tipos essenciais. Por um lado, aquelas cuja criao e circulao ocorrem no espao da dedicatria:

Amo-te tanto, tanto,

Como as rosas do jardim.

Gostaria de saber se tu

Ainda me amas a mim.

Amo-te tanto, tanto,

Que sem ti no sei viver.

Se tu me deixasses,

Eu preferia morrer.

 

Por outro, as que foram colhidas na tradio literria da comunidade, como a que apresentamos a seguir, entre muitas outras, de uso alargado[35]:

Esta noite sonhei eu

Que estava com o amor nos braos.

De manh quando acordei

Estavam os lenis em pedaos.

Esta noite sonhei eu,

Um lindo sonho sonhei;

Quando te ia beijar,

Ora bolas, acordei.

           

Como acontece no cancioneiro popular, so vulgares as estruturas pr-existentes, poemas abertos em que basta permutar o nome do destinatrio ou algum pormenor biogrfico, para se operar a sua adequao:

.. um lindo nome,

H muitos, muitos iguais.

S tu me amas a mim

E eu te amo muito mais.

Foi no dia 3 de Setembro[36]

Que eu te conheci;

Se queres saber uma coisa,

Eu estou apaixonada por ti.

 

Depois deste conjunto de reflexes sobre o cancioneiro infantil e juvenil, impe-se procurar definir, na medida do possvel, a funcionalidade desta forma particular de comunicao literria (sem desconsiderar os demais cdigos artsticos que lhe esto associados), as razes da sua existncia na cultura de crianas e jovens, os efeitos dos textos e microtextos poticos no sistema de regras tico-sociais e de conhecimentos que define os seus utilizadores e as comunidades a que estes pertencem. As rimas cumprem diversas funes irredutveis a um quadro taxinmico rgido, dada a sua heterogeneidade, complexidade e acomodao a situaes diversas. Parece-nos que a funo recreativa, ldica, aquela que se reveste de maior amplitude. Estes poemas geram prazer (fsico e psquico) e actuam como modelos e instrumentos de interaco com o meio envolvente. Funcionando geralmente como jogo verbal-gestual, permitem resolver ou mitigar uma necessidade de evaso, descontraco, competio, libertao de energia, ao mesmo tempo que operam j enquanto mundo do literrio, no s – releve-se – como iniciao no mundo da arte[37]; mundo, alis, de autonomia do esttico e do belo, de leitura e redefinio dos condicionalismos do real-real, de criao de outras formas, pelas quais, num espao e num tempo renovados, se plenamente humano.

Esse travejamento, atravs do que muito fragilmente divisamos ser a psicognese da rima, comunica directamente com o binmio identidade esttica do sujeito / alteridade da matria potica. Apesar do muito que h ainda a reflectir e a descobrir, no restam hoje dvidas sobre a capacidade eminentemente construtiva da dimenso psicolgica da palavra em aco no universo infanto-juvenil. Neste mbito, como dissemos, a exigncia de evaso um dos factores que mais contribui para o xito da maioria destes textos, formas de expresso que combinam o emocional, sonhado e ideal com o vivido ou pressentido. Actuando como estruturas de sublimao, lenitivos ou solues catrticas para os desencantos e dramas gerados pelo quotidiano[38], acompanham e reforam o desenvolvimento e a aquisio de mecanismos de simbolizao e de abstraco. Por exemplo, o texto Em casa do Gonalo/ Canta a galinha,/ No canta o galo, assente na dialctica globalizao/fragmentao, tem subjacente a ideologia de supremacia masculina, que no passa despercebida aos seus utilizadores. Trata-se de um longo processo de construo de conceitos e noes, de compreenso de um aspecto fundamental da linguagem verbal: cada vocbulo no representa um objecto, uma pessoa ou um acto nicos, mas antes um conjunto marcado por um certo nmero de caractersticas comuns, embora no constitua um todo indecomponvel. No por acaso que investigadores consagrados tm sublinhado a relevncia das rimas infantis para o estudo da psicanlise colectiva, dos factos da conscincia infantil, suas ideias, seus sentimentos e suas leis[39]. Sob formas metafricas, alegricas ou directas, a rima um intermedirio que pode revelar muito sobre as adversidades ou prazeres ocultos experimentados pela criana. A sua linguagem potica escapa aos constrangimentos de natureza social e moral, opera transgresses de qualquer tipo, configuradas numa expressiva potica do obsceno, preservada da autoridade e da censura dos adultos. Aspecto essencial da arte potica infanto-juvenil, produzido a partir de recursos to diversos como ilogismos, dissonncias semnticas, jogos de palavras, personagens ou situaes anmalas, o cmico verbal (a que se associa o humor mmico, com significados sociais, psicolgicos e fisiolgicos muito variados) depende com frequncia da obscenidade instaurada pelo palavro, quase sempre escatolgico:

Serafi-fi-fim,

Cala rota de cotim,

O chapu lavrador,

O teu cu cheira a fedor.

Arco da velha,

No bebas a;

Velhas e novas

Cagaram a.

 

Atravs dos efeitos emotivos, cognitivos e volitivos desencadeados pelos textos nos seus emissores e receptores, este tipo de comunicao tambm um importante vector de socializao. A criana encontra neste fenmeno artstico uma estrutura que, integrando-a no tecido social dos seus pares, a orienta, impondo-lhe ou sugerindo-lhe a interiorizao de modelos comportamentais e de uma mentalidade codificada (mas no rgida). Rimas de jogos como a cabra-cega, as cantigas de roda ou as lengalengas e as rimas de zombaria favorecem a integrao da criana no meio em que est inserida, fazendo-a respeitar os outros e ser respeitada, munindo-a de mecanismos de defesa e de ataque (as respostas prontas so um bom instrumento de resguardo e de provocao[40]. Por exemplo: – Ento?/ – Diz o meu co,/ Vai missa e tu no).

A execuo de uma rima infantil ou juvenil , por outro lado, um acto esttico, vinculado a uma caracterstica essencial da linguagem potica - a sua funcionalidade prpria e o seu fechamento, condies determinantes para a sua autonomia esttico-discursiva. A funo esttica prende-se com a utilizao da palavra como objecto, com a capacidade do significante suplantar o significado e produzir literariedade, atravs da sua materialidade, densidade e estranhamento. O crescimento dos autores-utentes destes textos acompanhado de uma intuio cada vez mais aguda para os elementos e valores que atribuem feies peculiares a essa linguagem potica, distinta da linguagem corrente. Nesta iniciao ao literrio adquire relevo particular o aprazimento articulatrio da linguagem (mais do que a sua decifrao referencial), beneficiado pela especificidade da arte potica convocada, e a percepo da vertente marcadamente ficcional de tais textos, ligada ao conceito de fingimento artstico enquanto modelao esttico-verbal que constri um mundo imaginrio, detentor de uma verdade imanente e intrnseca.

A aprendizagem da lngua tambm muito facilitada por esta poesia comunal e memorial, que, num processo integrado e gradativo de aperfeioamento da chamada gramtica intuitiva (apoiada no verso, estrutura rtmica muito perceptvel na poesia oral, que produz ou refora complexos processos de semiotizao como o ritmo, a rima, a aliterao e a assonncia), desenvolve a explorao dos nveis fonolgico, morfolgico, sintagmtico e semntico. Os trava-lnguas, por exemplo, no so importantes apenas do ponto de vista ldico. A funo psicolingustica  desempenha igualmente um papel primacial, porquanto esses jogos verbais funcionam como apoio do ensino e desenvolvimento da lngua materna aos mais jovens[41]. A estrutura fonolgica aquela qual a criana acede mais cedo, atrada pela componente ldica do som[42]. De textos curtos, com cerca de cinco ou seis versos, em mtrica de quatro a seis slabas, a criana passa depois a textos formal e semanticamente mais complexos, que se valem da ambiguidade, da comutao lexical, de representaes sociais, da stira ao mundo dos adultos (Manel, carrapachel,/ Faz as papas mulher./ Se ela no quiser,/ D-lhe com o rabo da colher). Da construo de uma identidade lingustica e afectiva passa-se para um processo de dialogismo cultural e ideolgico progressivamente mais intrincado.

A errncia da poesia oral infantil e juvenil, fenmeno polidrico de mltiplos temas e motivos, variadas e maleveis formas, infinitas variantes, mltiplas vozes, ecos persistentes, a prpria errncia da criana que a actualiza no contacto consigo mesma e com o outro, com o mundo. Atravs do poema oral, a criana v-se eu e no-eu, desloca-se procura de si no outro, mas tambm procura do outro em si: esta poesia oral , por conseguinte, essa busca interminvel do eu-outro no interior do sujeito (que, com certeza, se quer absoluto, forte, reconhecendo-se, contudo, na deriva que a sua construo, fragmentado e em fragmentao contnua. O modo como, por parte do sujeito, se processa a percepo desse processo um abismo impenetrvel aos nossos olhos). O heri do desenho animado (Willy Fog ou o Popeye, por exemplo), o protagonista de telenovela (nem que seja intudo apenas a partir da melodia do genrico do produto televisivo) ou o futebolista transformam-se em alter-egos do intrprete-autor da rima e de todos que com ele interagem, valem como duplos atravs dos quais o sujeito da enunciao se anima na diferena para prolongar a sua identidade.

            Neste momento, por razes de ordem desportiva sobejamente conhecidas, faz todo o sentido acolher aqui trs quadras recentes, colectivas e annimas, em que se desfibra o infinito de uma paixo – a um tempo imanente, social, e transcendente, com a opacidade das pulses originais e crpticas – que nenhum discurso no literrio alguma vez poder fixar de modo mais intenso. E se, como diz Barthes, O mito uma fala, se qualquer objecto do real pode transferir-se de uma existncia sem palavras, calada e reclusa, a uma vida oral, permevel descoberta e inveno pela sociedade, h que prestar ateno a estes poemas orais, no s pelo que neles representao colectiva, mito, ou fala mtica, mas tambm pelo que neles anterior – a linguagem potica, a arquitectura preestabelecida, j trabalhada em funo de uma comunicao adequada – ao estatuto mtico a inscrito:

 

o nmero dez,

Finta com os dois ps;

melhor que o Pel,

o Deco, ol ol.

 

o nmero dez,

No finta cos dois ps;

No melhor que o Pel,

o Deco, cheira a chul.

 

o nmero vinte,

No h ningum que o finte;

melhor que o Simo,

o Deco da Seleco.

 

Poemas, sem dvida, bem eloquentes da atraco exercida pelo outro de si mesmo, os quais reescrevem e inscrevem na cultura moderna o mito enquanto liturgia que exprime a unidade primordial incessantemente buscada em qualquer sociedade. A quadra mais do que uma forma em que se perpetua um contedo: , na sonante regularidade que a caracteriza, metonmia da vontade de expresso perfeita de uma vida sublime em linguagem potica e, portanto, divina ou supra-humana; e o segundo texto mais do que uma simples pardia dessa liturgia porque tambm diz, na relao que estabelece com a verso celebrante de um deus do futebol, a organizao conflitual do grupo, dentro de uma mitologia que suprime, por momentos, a monotonia e a corroso do quotidiano, substituindo-o por um tempo que de gozo de vivncias de superioridade fsica e psquica, de espanto perante o mundo; e de espanto perante a irrupo da palavra potica que traz ao intrprete-autor, deslumbrado pelo que nela ao mesmo tempo intensidade do imanente e do eterno, a evidncia do milagre da vida e das coisas do quotidiano.

Nas rimas de zombaria, o confronto com o outro tambm implica uma comparao, implcita ou explcita, que agora contudo opera por excluso, enquanto gesto de impossibilidade de conciliao (҃ canja, canja de piru,/ O Porto ganha a taa/ E o Benfica limpa o cu), ou pelo menos como marcao inequvoca de diferena entre um eu e um ele. O corpo-a-corpo do ser que (se) joga mediado, em textos particularmente clebres, pela espessura blica das asseres contidas nos versos pares e pelo ritmo militar por que todos os termos so pronunciados e projectados sobre os destinatrios (presentes e/ou ausentes): 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7,/ Comigo ningum se mete,/ 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1,/ Parto a cara a qualquer um.

O poema oral infantil e juvenil um discurso de (contra)poder (instvel, provisrio, experimental, no totalitrio) do ser individual: poder sobre a sua solido, revertida em espanto, admirao e euforia perante um mundo complexo e continuamente desafiador, poder do corpo e da palavra (da palavra-corpo) sobre outros corpos e outras palavras. Mas a rima nunca um discurso irredutivelmente egocntrico: ela pode mesmo ser a comunho desejada com o outro, ainda que o ridculo seja muitas vezes a tctica de aproximao. Aproximao pelo humor, com efeito, o que ocorre, num determinado enquadramento contextual, com os microtextos que zombam de pessoas: Quim,/ Tira a mo do pudim!, Z,/ Caga de p ou Pinto,/ Que nunca mais chega a galo. O sujeito pronuncia o texto no momento em que admite a ideia de ser ouvido, de chegar a algum, de impor a sua mesmidade ou a sua alteridade (o seu ser-outro), a sua verdade ou o seu fingimento. A fraqueza fsica e psicolgica, atravs destes textos, converte-se em fora dirigida contra a crueldade do outro, surpreendido por uma tal arte de sobrevivncia. O que mais uma vez prova como a rima pode ser um factor importante de aquisio, organizao e aperfeioamento da competncia de comunicao, desenvolvendo capacidades na ordem do crer, do dizer e do fazer. O maior sortilgio desta poesia do eu-tu e do aqui-agora, de natureza ritual e relacional, consiste em (re)criar tudo o que por ela nomeado, numa dimenso de polifonia em que tudo se prope a novas significaes e correco da imperfeio humana (pela celebrao da liberdade – de valor ertico – de ler o humano sem convenes rgidas).

A rima , portanto, um objecto transicional e transaccional: , respectivamente, um predicado atravs do qual um agente dotado de interioridade absorve uma exterioridade que pretende conter em si, desconstruir para compreender, e, ao mesmo tempo, uma substncia-fora contratual, j que abre sucessivos pontos de concesso recproca entre o eu e o outro (mesmo que o outro seja o eu em trans-formao). A rima , numa palavra, compensao, transgresso da distncia que separa o eu do outro (o eu de si e o eu do mundo): percepo do outro como apreenso e conhecimento de si prprio. Ou ainda: a rima a festa da poesia, da comunicao e da liberdade afectiva, a exploso carnavalesca de energias interiores essenciais vida. A proposio jogo, logo existo (eco que nos chega de Johan Huizinga, no seu Homo Ludens?) acompanha as representaes internas e externas da criana e do jovem, garantindo-lhes, na conscincia de si e do outro no jogo, movimentos constantes e biunvocos entre a identidade e a alteridade. Quer dizer, a rima-jogo como que agudiza no autor-intrprete a percepo de que ele um corpo sensvel interno, um dentro de si, mas tambm um objecto sensvel externo, uma parte do mundo.

Em concluso: a poesia infanto-juvenil de transmisso oral apresenta-se como um universo complexo de formas e de sentidos que, com as devidas precaues metodolgicas, descritivas e hermenuticas, podemos analisar e apreender. Atravs deste patrimnio comum e sempre incomum, centro de identidades e diferenas, a comunidade infantil e juvenil posiciona-se perante um mundo profundamente plurvoco, metaforiza-o, fragmenta-o e pluraliza-o, descobrindo nele facetas insuspeitadas, misteriosas ou proeminentes. Os princpios correlativos identidade / alteridade do sujeito – enquanto contnuo relacional e dinmico, a um tempo biolgico e simblico, cultural – confluem na identidade deste gnero especial da poesia oral, de que ele emissor e receptor, criador e criao, entidade que molda e moldada. Nos objectos poticos do cancioneiro infanto-juvenil cruzam-se formantes de identidade pessoal e social, potenciadores, por sua vez, de manifestaes do outro (outro-eu-mesmo ou outro-outro). Ao adulto (investigador, educador[43]) cabe acercar-se sem preconceitos destes rgos de expresso do corpo-esprito (para muitos no mais do que um dos limbos em que se desdobra a literatura oral), com a convico de que, ao captar alguns dos contornos desta escola potica oral, particularmente no que diz respeito imagem do outro na construo do prprio eu, compreender melhor a idiossincrasia e a essncia da infncia e da juventude. Com isto, poderemos talvez reaprender a procurar os sentidos da magia da palavra artstica, o encontro ldico-afectivo e cognitivo com a densidade e o peso prprios (sempre diferentes, a cada contacto) de cada coisa, a (re)criao de mundos (ir)reais de todo o tipo. Isto : poderemos, porventura, adultos habituados a subordinar o binmio linguagem verbal / linguagem do corpo a um real-real totalitrio, recuperar o dom da ingenuidade (consciente, no caso) que v e diz o que de nenhum outro modo pode ser entrevisto e dito. Porque ilimitado o poder salvador da palavra.



[1] Porto, Porto Editora, 1992.

[2] Consideramos que a transmisso de criana a criana (de jovem a jovem) um trao essencial do cancioneiro infanto-juvenil, ainda que, muitas vezes, sobretudo nos primeiros anos, o emissor (e, com frequncia, o produtor) de certos textos seja um adulto. A criana recebe o que lhe dirigem, podendo mais tarde assumir-se ou no como instncia emissora, como acontece, por exemplo, com Dedo mendinho,/ Vizinho,/ O maior de todos,/ Fura-bolos,/ Mata-piolhos, Queijo, queijete,/ Boca comedeira/ Nariz, narigo,/ Focinho de co,/ Olhos pisqueiros,/ Testa de gesta,/ Foge, cabelo louro,/ Que te esfouro ou Sardo pinto,/ Bolo quente,/ Salta c pr frente/ A ver qual o mais valente. J no corpus das fases mais avanadas, as crianas invertem constantemente os papis de emissor e de receptor, adoptam, actualizam e concebem novas composies. Nesta linha, como j dissemos noutro lugar, contrariando a estratgia de edio da maioria dos recolectores de literatura oral portuguesa e estrangeira, defendemos que as cantigas de embalar no devem ser integrados na literatura oral infantil, como sub-rubrica das rimas infantis. Avaliando a sua produo e execuo (por adultos, geralmente mulheres), o seu contedo (ligado ao universo familiar) e as suas funes (acalmar e/ou adormecer crianas), preferimos enquadr-las na rubrica Famlia (cf. Carlos Nogueira, Cancioneiro Popular de Baio, vol. II, in Bayam, n.os 7-10, Baio, Cooperativa Cultural de Baio - Fonte do Mel, 2002, pp. 165-166).

[3] Rimas Infantis: A Poesia do Recreio, Porto, Afrontamento, 2000.

[4] Cf. Ana Pelegrn, La Flor de la Maravilha. Juegos, Recreos, Retahlas, Madrid, Fundacin Germn Snchez Ruiz Prez, 1996, trabalho que inclui, para alm de outros ensaios, quatro captulos da tese de doutoramento da autora, Juegos y Poesa Popular, apresentada Universidade Complutense de Madrid, em 1992.

Entre ns, Joo David Pinto Correia publicou h pouco um artigo de qualidade inquestionvel, marcado, a cada passo, por snteses oportunas e perspectivas renovadas sobre O Cancioneiro Tradicional Infantil, que, como diz arrojadamente (justamente) a abrir, constitui, sem dvida, um dos conjuntos de composies mais representativas da Literatura Oral e Tradicional do Ocidente e, portanto, tambm do patrimnio cultural portugus: Jogos e jogo no Cancioneiro Tradicional Infantil: uma possvel retrica, in Joo Carlos Carvalho e Ana Alexandra Carvalho (org.), Retricas, Lisboa / Faro, Edies Colibri / Centro de Tradies Populares Portuguesas / Centro de Estudos Lingusticos e Literrios, 2005, pp. 63-84. Cf., do mesmo autor, A Literatura Oral e Tradicional e o seu pblico infantil, in Anais da Utad – Revista de Letras 3: II Encontro de Literatura Infantil, vol. 9, n. 1, Vila Real, Universidade de Trs-os-Montes e Alto Douro, Setembro de 1999, pp. 57-72.

[5] Folclore da Figueira da Foz, Esposende, Tipografia de Jos da Silva Vieira, 1911 (Folclore infantil, pp. 220-306).

[6] Lus da Cmara Cascudo, Literatura Oral no Brasil, 2 ed., Rio de Janeiro, Livrar. Jos Olympio/MEC, 1978, p. 22.

[7] Do verso: Aproximaes (arte verbal infantil), in Revista da Faculdade de Letras Lnguas e Literaturas, II Srie, vol. IV, Porto, Faculdade de Letras, 1987, pp. 75-92.

[8] Rimas infantis, in Jornal de Notcias, 26/11/89, p. 72.

[9] Cf. Alexandre Castanheira, Trs Ensaios sobre o Cancioneiro Infanto-Juvenil, Lisboa, Instituto Piaget, 2002.

[10] Cf. Cancioneiro Infantil, J. M. Boavida-Portugal, msicas de Antnio Viana et alii, Lisboa, Oficinas Grficas da Gazeta dos Caminhos de Ferro, 1952, e Cancioneiro Infantil, msica de Estefnia Cabreira, letra de Oliveira Cabral, ilustraes de Guida Ottolini, Porto, Porto Editora, [1962], obras em que o literrio, em vez de se dobrar e desdobrar sobre si mesmo em movimentos de fluxo e refluxo de sentido esttico, social e humano, praticamente se reduz propaganda dos valores veiculados pelo regime salazarista. No segundo daqueles livros, por exemplo, pode ler-se, no Hino das escolas infantis: Viva a alegria! Na nossa escola/ ningum triste! Passa-se o dia/ sem dar por isso! Faz bem, consola/ ver esta escola. Viva a alegria! (...) // Ai! quando s vezes, nas nossas casas/ falta o pozinho vimos com-lo/ na nossa escola, pois sob as asas/ desta mezinha viver belo (p. 8).

[11] Paul Zumthor, Pour une potique de la voix, in Potique, n 40, Paris, d. du Seuil, Novembre de 1979, p. 524.

[12] Var.: Sarabico, bico, bico.

[13] Var.: D um berro at Frana.

[14] Var.: Ti-ti-ti, gosto mais de ti.

[15] Var.:

A-bom-bi, coroni,

.............................

Nada-mi, buf-buf.

[16] Var.: Fa-mi, aca-de-mi, muf-muf.

[17] Sesso dd, Zurique, 1917. In Mrio Cesariny, Textos de Afirmao e de Combate do Movimento Surrealista Mundial (1924-1976), Lisboa, Perspectivas & Realidades, 1977, p. 30.

[18] Sempre que possvel, recorro a designaes j adoptadas nas recolhas ou estudos sobre rimas infantis.

[19] Cf. Ana Pelegrn, Retahlas, romances de la tradicin oral infantil, in Virtudes Atero Burgos (ed.), El Romancero y la Copla: Formas de Oralidad entre dos Mundos (Espaa-Argentina), Sevilha, Universidad Internacional de Andaluca, Universidad de Cdiz, Universidad de Sevilla, 1996, pp. 77-79.

[20] Alis, j o dissemos em diversos locais, ao socorrer-se cada vez mais da rima infantil tradicional como instrumento pedaggico-didctico, o ensino institucionalizado, com particular incidncia na primeira infncia, est a (re)produzir uma parte importante do folclore literrio portugus, cujas repercusses no tecido socio-humano podero ser avaliadas dentro de alguns anos, depois da necessria maturao, atravs de inquritos rigorosos.

[21] Cf. Ana Pelegrn, Literatura oral infantil, in Anthropos – Revista de Documentacin Cientfica de la Cultura, Literatura Popular: Conceptos, Argumentos y Temas, n.os 166-167, Barcelona, Editorial Anthropos, 1995, pp. 124-129.

[22] Antonio Snchez Romeralo, El Villancico (Estudios sobre la Lrica Popular en los Siglos XV y XVI), Madrid, Gredos, 1969, p. 125.

[23] Apenas um exemplo: semanticamente diferentes, embora com uma estrutura fonomeldica muito prxima, estes textos pertencem certamente ao mesmo arqutipo. As modificaes verificam-se devido a processos de variao como a analogia, a supresso ou a ampliao, situados no eixo horizontal e no eixo vertical das estruturas formulsticas (sobre a questo da variante na poesia oral, cf. Carlos Nogueira, Literatura Oral em Verso. A Poesia em Baio, V. N. Gaia, Estratgias Criativas, 2000, pp. 70-87):

O menino atirou a bola ao ar,

A que terra foi parar?

Um aviozinho militar

Atirou cuma bomba ao ar;

A que terra foi parar?

 

[24] Para alm do ritmo intensivo e do ritmo silbico, o ritmo de tom indispensvel nalgumas rimas infantis, em especial nas lengalengas com palmas ou nas de tipo pergunta-resposta.

[25] Cf. Maria Jos Costa, Um Continente Potico Esquecido: As Rimas Infantis, pp. 81-96.

[26] Vera Vouga, Do verso: Aproximaes (arte verbal infantil), p. 76.

[27] Cf. cap. XXIII - Rimas Infantis.

[28] Porto, Edio do Autor, 1998.

[29] Pra que nunca mais te esquea: os versos dos lbuns infanto-juvenis, in Olhares Sobre a Literatura Infantil - Aquilino, Agustina, Conto Popular, Adivinhas e Outras Rimas, pp. 107-143.

[30] Faz-me um verso, Dedica-me uns versos, Vou-te fazer uns versos so apenas algumas frmulas de uma actividade ilocutria cuja concretizao perlocutria tem uma marcao visual, grfica e, portanto, permanente, o que quer dizer que implica sempre, para o destinatrio, de um ou de outro modo, um valor accional: muda, aprofunda-se a relao do eu com os outros e consigo mesmo.

[31] Quadra recolhida por ns na Escola C+S de Baio, em 1997.

[32] Jos Leite de Vasconcelos, Cancioneiro Popular Portugus, I, coordenao e introduo de Maria Arminda Zaluar Nunes, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1975, p. 669.

[33] In Bayam, n 4-5, Baio, Cooperativa Cultural de Baio - Fonte do Mel, 1996.

[34] Adaptao da celebradssima quadra que termina com o verso Amo-te em portugus.

[35] Cf, por exemplo, Jos Leite de Vasconcelos, Cancioneiro Popular Portugus - I, coordenado e com introduo de Maria Arminda Zaluar Nunes, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1975, p. 674; e Carlos Nogueira, Cancioneiro Popular de Baio, vol. I, in Bayam, 4-5, Baio, Cooperativa Cultural de Baio - Fonte do Mel, 1996, p. 181.

[36] Sublinhados nossos.

[37] Francisco Adolfo Coelho, Jogos e Rimas Infantis, Porto, Magalhes e Moniz Editores, Biblioteca dEducao Nacional, 1883, p. 86.

[38] Carlos Nogueira, Funes da poesia oral, in Brigantia, vol. XIX, n. 3-4, Bragana, Assembleia Distrital de Bragana, 1999, p. 70.

[39] Cf. G. Ferdiere, Intrt psychologique et psychopathologique des comptines et formulettes de lenfance, in volution Psychiatrique, fasc. III, Paris, 1947, pp. 44-60; e Les comptines et formulettes tudies par un psychologue du Jeu de lenfant Jean Chteau, in volution Psychiatrique, fasc. IV, Paris, 1947, pp. 100-107.

[40] Cf. Francisco Topa, Na ponta da lngua - sessenta e cinco novos textos e algumas reflexes sobre as respostas prontas, in Revista da Faculdade de Letras - Lnguas e Literaturas, II Srie, vol. XIV, Porto, Faculdade de Letras, 1997, pp. 511-528.

[41] Cf. Louis-Jean Calvet, La Tradition Orale, Paris, Presses Universitaires de France, pp. 9-10. As terapias da fala valem-se com sucesso destes textos, construdos a partir de um tipo predominante de aliterao e cacofonia, o que permite escolher o texto que melhor se adapta ao tratamento da deficincia em causa: Eu tenho quatro tbuas,/ Todas quatro mal Atravincontinquelotadas:/ Mandei chamlo atravincontinquelador/ Que mas venha atravincontinquelar melhor.

[42] Cf. Frdric Franois, Linguistique, Paris, Presses Universitaires de France, 1980, p. 267.

[43] Sobre o aproveitamento pedaggico-didctico da literatura oral infantil, cf. o sugestivo estudo de Jean-Nol Pelen e Christiane Savary, Utilisation de la littrature orale enfantine a des fins pedagogiques: une exprience de contage et milieu scolaire, in Cahiers de Littrature de Orale, n 33, Paris, inalco, Publications LanguesO, 1993, pp. 145-166. Cf. tambm Maria Jos Costa, Um Continente Potico Esquecido: As Rimas Infantis, pp. 133-169.